COMENTÁRIO BÍBLICO
Domingo de Pentecostes – Ano C
5jun2022
S. João 14,8-17.25-27
8Filipe pediu-lhe: «Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta.» 9Jesus respondeu-lhe: «Filipe, há tanto tempo que vivo convosco e ainda não me conheces? Aquele que me viu, viu também o Pai. Como é que tu me pedes: Mostra-nos o Pai? 10Não acreditas que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que vos digo não as digo por mim. O Pai que está em mim é quem realiza as suas obras. 11Acreditem que eu estou no Pai e o Pai está comigo. Mas se não querem crer em mim pelas minhas palavras, creiam em mim ao menos pelas minhas ações. 12Digo-vos com toda a verdade que aquele que crê em mim faz tudo aquilo que eu faço e há-de fazer coisas maiores ainda, porque eu vou para o Pai. 13E hei-de conceder tudo o que pedirem em meu nome para que o Pai seja glorificado no Filho. 14Por isso, hei-de fazer tudo o que me pedirem.»
15«Se me amarem hão-de cumprir os meus mandamentos, 16e eu pedirei ao Pai para vos enviar um outro Defensor que esteja sempre convosco. 17O Espírito de verdade que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece. Ele está convosco e habitará em vós, por isso o conhecem.
25Digo estas coisas enquanto estou ainda no meio de vós. 26Mas o Defensor, o Espírito Santo que o Pai vos irá enviar em meu nome, há-de ensinar-vos tudo e fará com que recordem tudo o que eu vos ensinei.
27A paz vos deixo, a minha paz vos dou. Mas não a dou como a dá o mundo. Não se preocupem nem tenham medo.
1. O autor do Livro dos Atos dos Apóstolos – alguém que se atribui a autoria do Evangelho de S. Lucas – usa a festa judaica das 7 semanas(Êxodo 34,22), 50 dias depois da Páscoa, que mais tarde passou a ser a Festa da Renovação da Aliança, para narrar o episódio da descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos. Um dos aspetos mais marcantes desta narrativa está no dom das línguas. “Todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas” (Atos 2, 4), levando a “multidão” que disso se deu conta a ficar perplexa, “pois cada qual os ouvia falar em seu próprio idioma” (Atos 2, 6) e “estavam todos estupefactos”(Atos 2, 12). Há nisto algo de semelhante ao carisma da “glossolalia”, frequente nos primórdios da Igreja (Atos 10, 46; 19, 6), que utilizava palavras em línguas estrangeiras para cantar as “maravilhas” de Deus (Atos 2, 11; I Coríntios 14, 2 e seg.). Parece, portanto, que se pretende ‘ver’ no falar em todas as línguas do mundo a restauração da unidade perdida em Babel (Génesis 11, 1-9)e, dessa forma, a “antecipação maravilhosa da missão universal dos Apóstolos” (Bíblia de Jerusalém). Ou seja, o Espírito Santo “desceu” sobre os Apóstolos “reunidos no mesmo lugar” – a Igreja – para fazer deles “fatores de comunicação” entre os povos com vista à unidade pela qual Jesus orou antes da Sua paixão, a unidade que se realiza no Pai, em Jesus e em todos os crentes “para que o mundo creia” (S. João 17, 21).
2. Também, o símbolo das línguas diversas que os Apóstolos começaram a falar indicia que o Espírito Santo os enviou não para uma humanidade de língua, cultura e religião únicas, mas, à diversidade do modo de ser pessoa humana e aí afirmar a unidade nutrida no amor de Deus, isto é, no maior respeito, tolerância e bondade pela diversidade de cada um. Só assim se pode acabar com as guerras entre povos e construir um mundo novo.
Ainda, a narrativa do Livro dos Atos nos mostra uma dinâmica muito própria do Espírito Santo, como, aliás, se enfatiza na Mensagem do Pentecostes, deste ano, dos Presidentes do Conselho Mundial de Igrejas:
“O Espírito Santo mostra em Atos novos dons, novas maneiras de evangelizar, novos lugares onde chegar, novos estilos de vida, como chegar a seres humanos discriminados; toma vidas ao serviço da perseguição e da morte e transforma-as em vidas ao serviço do nome de Cristo e suas boas novas; dá poder para confrontar poderes políticos, militares y económicos.”
Parece que estamos a ver um filme. A apresentação do Espírito Santo por Jesus, no Evangelho de hoje, como guia seguro a conduzir os passos dos Apóstolos (“um Defensor que esteja sempre convosco. O Espírito de verdade que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece. (…) Ele há-de ensinar-vos tudo e fará com que recordem tudo o que eu vos ensinei.”) e, mais tarde, a Igreja a entender a necessidade de construir espaços seguros e salvar vidas.
Nesse sentido, naquela Mensagem os Presidentes do CMI elevam ao Senhor uma prece:
“Oramos para que a dinâmica deste Espírito (…) continue a pôr na boca da igreja palavras de vida eterna. Que a sua criatividade se faça presente com os seus inesperados movimentos e nos leve com o seu alento de vida a onde queira.”
3. Não se diz o Espírito Santo, sente-se na surpresa de uma flor, no milagre diário, na beleza das coisas habituais… quando delas nos damos conta. Não se diz o Espírito Santo, vive-se na libertação dos nossos preconceitos, na concórdia e mútuo entendimento, no empenho para compreender e/ou escutar o outro. Não se diz o Espírito Santo, descobre-se no esforço quotidiano para acabar ou, pelo menos, minorar as desigualdades.
Nesse Espírito, então, percebemos que a nossa vida é aquela que Deus ama em abundância (S. João 10, 10)com a vontade de que a vivamos em paz. Não aquela que nos propõe o mundo, mas a que nos vem de Jesus: “A paz vos deixo, a minha paz vos dou. Mas não a dou como a dá o mundo. Não se preocupem nem tenham medo.”Sim, uma paz que não se acomoda, mas que se incomoda com tudo o que nos separa do amor de Deus que está em Cristo Jesus. E a paz de Jesus é a ambiência do nosso raio de ação, alimentada pela presença do Espírito Santo.
+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana