15º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 10/7/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
15º Domingo Comum - Ano C
10jul2022

 

2 Reis 2,1.6-14; Salmo 139,1-11; Colossenses 1,1-14
 
S. Lucas 10,25-37
25Um certo doutor da lei, que queria experimentar Jesus, levantou-se e fez-lhe esta pergunta: «Mestre, que devo eu fazer para ter direito à vida eterna?» 26«Que diz a Escritura acerca disso?», respondeu-lhe. «Como é que a entendes?» 27E ele disse: «Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a alma, com todas as forças e com todo o entendimento. E ama o teu próximo como a ti mesmo.» 28Jesus comentou: «Respondeste bem. Faz isso e alcançarás a vida.» 29Mas o doutor da lei, querendo justificar-se, tornou a perguntar: «E quem é o meu próximo?» 30Então Jesus contou o seguinte: «Ia um homem a descer de Jerusalém para Jericó. Caíram sobre ele uns ladrões que lhe roubaram roupa e tudo, espancaram-no e foram-se embora, deixando-o quase morto. 31Por casualidade, descia um sacerdote por aquele caminho. Quando viu o homem passou pelo outro lado. 32Também por lá passou igualmente um levita que, ao vê-lo, se desviou. 33Entretanto, um samaritano que ia de viagem passou junto dele e, ao vê-lo, sentiu compaixão. 34Aproximou-se, tratou-lhe os ferimentos com azeite e vinho e pôs-lhe ligaduras. Depois colocou-o em cima do seu jumento, levou-o para uma pensão e tratou dele. 35No outro dia, deu duas moedas de prata ao dono da pensão e mandou-lhe: “Cuida deste homem, e quando eu voltar pago-te tudo o que gastares a mais com ele.”» 36Jesus perguntou então ao doutor da lei: «Qual dos três te parece que foi o próximo do homem assaltado pelos ladrões?» 37E ele respondeu: «O que teve compaixão dele.» Jesus concluiu: «Então vai e faz o mesmo.» 
 
 
1. A parábola do Bom Samaritano é exclusiva do Evangelho de S. Lucas. E parece que foi ali narrada para estabelecer uma comparação entre o proceder dos representantes da religião oficial e o sentido ético dum ‘herege’ samaritano perante um facto da vida diária.  
Deste episódio, porque muito conhecido, ressaltam as atitudes do sacerdote e do levita, que “passaram de lado”, e a do samaritano, que “sentiu compaixão”, perante a situação do ferido caído por terra. A questão maior para aferir do que entendemos por nosso próximo é realmente a compaixão. Podemos dar aos pobres, ajudar a quem precise, expressar a nossa bondade perante quem dela necessite, mas, no fim, o que conta é o que nos faz próximos. Isto é, o que em nós vai mudando o nosso ‘olhar’ e nos humaniza, faz crescer em humanidade. É esse estado de alma que nos ajuda a ultrapassar as dificuldades de comunicação com os “feridos” do corpo e da alma; a, em vez de passar de lado, dispormo-nos à ajuda porque descobrimos o sofrente; a procurarmos saber qual “o azeite e o vinagre” mais adequados à “ferida” e qual a “pousada” para levá-lo; e, ainda, a ponderar os diversos meios para custear a cura.          
 
2. Conheci um filósofo e teólogo  católico romano canadiense chamado Jean Vanier (1928-2019) em 1983, quando participei na 6ª Assembleia Geral do Conselho Mundial de igrejas, em Vancouver, no Canadá. Apresentou á Assembleia a organização denominada “L’Arch”, que fundou em 1964, uma bem conhecida federação internacional de comunidades espalhadas por 37 países para pessoas com deficiência de desenvolvimento e para aqueles que as ajudam. A constituição destas comunidades é baseada na ‘crença’ do seu fundador de que as pessoas com deficiência são professores, em vez de encargos impostos às famílias. Uma perspetiva que escapa ao nosso olhar sobre os deficientes e, em especial, os que sofrem de patologias neurológicas. Vê-los como “professores” implica que se assuma a condição de aprendiz com uma constante atitude de curiosidade e procura de conhecimento sobre as condições da doença. Neste sentido, temos aqui bem patente o enquadramento em que se deu o ato benevolente do samaritano: em primeiro de tudo, a pessoa que sofre e a sua circunstância. Ora, às vezes não se consegue. Ou porque não nos aplicamos no ‘olhar’, ou porque ‘não se sabe’ como fazer. 
Então, aqui vos deixo o que li no livro “O Reino”, de Emmanuel Carrère, Edições tinta-da-china, Lisboa, 2021, pág. 427. Aí, com palavras simples, Jean Vanier explica o que se quer dizer sobre a “aprendizagem” que está subjacente ao ato de fazer o bem em nome de Jesus.
 
3. “Lembro-me – conta Jean Vanier – que, quando deixei a direção de L’Arch, tirei um ano sabático como assistente numa das comunidades, aqui ao lado, onde cuidava de um rapaz chamado Éric. Tinha 16 anos. Era cego e surdo, não sabia falar, não conseguia andar, não tinha aprendido e nunca aprenderia a fazer a sua higiene. A mãe abandonou-o à nascença, passou a vida toda no hospital, nunca se relacionou com ninguém. Nunca conheci ninguém tão angustiado. Tinha sido tão rejeitado, tão humilhado, todos os sinais que recebeu lhe diziam que ele era mau e que ninguém queria saber dele, que se barricou completamente na sua angústia. Tudo o que ele podia fazer, às vezes, era gritar, soltar uns uivos agudos durante horas, que me deixavam louco. É terrível: cheguei a entender aqueles pais que maltratam os filhos e até os matam. A sua angústia despertou a minha e até o meu ódio. 
O que podemos fazer com alguém que grita assim? Como se chega a alguém que está tão fora de alcance? Não podemos falar com ele, ele não ouve. Não podemos chamá-lo à razão, ele não entende. Mas podemos tocar-lhe. Podemos lavar-lhe o corpo. Foi o que Jesus nos ensinou a fazer na Quinta Feira Santa. Quando ele institui a Eucaristia, fala aos Doze coletivamente. Mas quando se ajoelha para lavar os pés dos seus discípulos, é a cada um pessoalmente, chamando-o por seu nome, tocando a sua carne, chegando onde ninguém foi capaz de chegar. 
Ser tocado e lavado não curará o Éric, mas não há nada mais importante para ele e para quem faz isso. Para quem faz: é o grande segredo do Evangelho. Esse também é o segredo de L’Arche: a princípio queremos ser bons, queremos fazer bem aos pobres e, aos poucos, pode levar anos, descobrimos que são eles que nos fazem bem porque, estando próximos da sua pobreza, fraqueza, angústia, expomos a nós mesmos a nossa pobreza, a nossa fraqueza, a nossa angústia, que são iguais, são as mesmas para todos, sabem, e então começamos a tornar-nos mais humanos. Comecem, então.”
 
+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana  
 
 

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