16º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 17/7/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
16º Domingo Comum - Ano C
17jul2022

2 Reis 4,8-17; Salmo 139,13-18; Colossenses 1,21-29
 
S. Lucas 10,38-42
38Jesus e os discípulos seguiam o seu caminho. Ao entrarem numa aldeia, uma mulher chamada Marta recebeu Jesus em sua casa. 39Ela tinha uma irmã chamada Maria que se sentou aos pés do Senhor para o ouvir. 40Ora Marta andava muito atarefada, por ter muito que fazer. Aproximou-se e disse: «Senhor, não te preocupa que a minha irmã me deixe só com todo o trabalho? Diz-lhe então que me venha ajudar.» 41Mas o Senhor respondeu: «Marta, Marta, andas preocupada e agitada com tantas coisas, 42quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada.»

1. Mais um episódio só narrado no Evangelho de S. Lucas. Ao contrário do comentário frequente a propósito dessa narrativa, conjugando-a com outras, não parece que aqui se possa inferir que Jesus queira fazer uma comparação teórica e qualitativa entre ação e contemplação, entre trabalho, disponibilidade e dedicação, por um lado, e devoção e consagração, por outro. Aliás, tanto uma como a outra atitude são duas faces do comportamento essencial a uma ação de acolhimento como aquela que ali se prefigura, a melhor hospitalidade a conceder tanto a Jesus como ao grupo que O acompanhava.
Jesus tem perfeita consciência de que a nossa vida é feita de inúmeras ações, umas mais fáceis, outras, mais difíceis, umas insignificantes, outras, essenciais, umas necessárias, outras, supérfluas. Então, a perícope, ao mostrar Jesus a responder a Marta «andas preocupada e agitada com tantas coisas, quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada.», dirige-se a nós e ao modo como enfrentamos as ocupações e desafios quotidianos, interpelando-nos para a necessidade de distinguir entre o essencial do supérfluo. Repare-se que “a melhor parte” não dispensa, precisa das outras partes e preocupações.
Miguel Torga escreveu num dos seus Diários “Temos tudo, falta-nos o essencial”. E o que é o “essencial” senão o que nos preenche, o que dá sentido à nossa vida, o que nos faz pensar no que somos e no modo como nos apresentamos no acolhimento de Deus e dos outros. Ora, aqui está o que Jesus nos quer dizer. Se queremos ser bons acolhedores temos de ter presente que só o somos verdadeiramente no encontro pessoal, centrado no que as pessoas (realmente) são, adaptando os pormenores e outras circunstâncias a esse ditame, à relação do encontro, e só.  

2. Se conjugarmos o relato do Evangelho de hoje com o da ressurreição de Lázaro (S. João 11, 1-43) verificamos que Marta é a gestora da casa, uma mulher resoluta, inquieta, sempre disponível e pronta a ajudar. É ela que, ao saber que Jesus está a chegar, por altura da morte de seu irmão, vai ao Seu encontro, e que, ao ver que Jesus manda que tirassem a pedra do sepulcro onde o tinham sepultado, Lhe diz, como aviso imediato, “Senhor, já cheira mal. É de quatro dias”. Nela as coisas acontecem à medida das circunstâncias, num pragmatismo que quase arrefece o sentimento e o carinho. Este tipo de pessoas é necessário para fazer as coisas andar, mas em determinados contextos, sem se darem conta, alteram, ou contribuem para alterar o sentido ou a essência de um ato. E isto porque nem sempre têm consciência da diferença entre o essencial e o efémero. Têm alguma dificuldade em compreender a importância da “escuta”. Encontram sempre algo a fazer que lhes capta totalmente a atenção e, por isso, as distrai do essencial. O desejo de tanto e tudo fazer – sem pensar – leva tais pessoas a esquecer (descurar) o tempo necessário e a parte mais importante que contém a “escuta” da Palavra e que leva à descoberta do ‘ser’ e ‘estar’ antes do ‘fazer’. E quantos de nós estaremos no número deste tipo de pessoas?            

3. A este propósito deixai que vos apresente um aviso do Papa Francisco feito não há muito tempo numa audiência a Bispos da América Latina: “lembrem-se de estar atentos às três idolatrias que sempre ameaçam a marcha do Povo fiel de Deus: a mediocridade espiritual, o pragmatismo dos números e o funcionalismo que nos leva a ser mais entusiastas pelo plano de rota do que pela rota.”(“7 Margens”, 12julho2022). A “mediocridade espiritual “ decorre, entre outras causas, da inexistência da “escuta”, seja de Jesus, dos outros e da nossa própria consciência. É muito mais fácil fixarmo-nos nas “certezas” das nossas convicções e preconceitos, em vez de abalançarmo-nos na sua análise comparando-os com a Palavra que é Jesus Cristo. Ou porque não temos tempo, ou não temos paciência, ou não queremos preocupar-nos com o que nos faz pensar, ficamos, assim, sujeitos a um modo de estar que não é propriamente o nosso, pois, é nos ditado pelas “mensagens” que nos vêm do exterior, boas, más ou assim-assim, e sempre com o objetivo de nos captar. É o estado de uma fé que assenta em declarações religiosas, credos, catecismos e outros instrumentos catequéticos, sem espírito crítico nem análise cuidada. E as igrejas, naturalmente, passam a reger-se no seu andamento pelo pragmatismo dos números, as estatísticas, e por um funcionalismo que lentamente lhes abafam o espírito. Não sei se são idolatrias, mas que são “coisas” que agitam e preocupam as Igrejas, lá isso são, e não são a melhor parte

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana
 
 

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