5º Domingo da Quaresma - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 3/4/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
5º Domingo da Quaresma – Ano C
03abr2022


Isaías 43,16-21; Salmo 126; Filipenses 3,8-14
 
S. João 8,1-11
1Jesus foi depois para o Monte das Oliveiras. 2No dia seguinte, de madrugada, voltou ao templo e toda a gente foi ter com ele. Jesus sentou-se e começou a ensinar. 3Entretanto, os doutores da lei e os fariseus levaram-lhe uma mulher apanhada em adultério. Colocaram-na no meio do povo 4e disseram a Jesus: «Mestre, esta mulher foi apanhada a cometer adultério. 5Moisés, na lei, mandou-nos apedrejar tais mulheres até à morte. E tu, que dizes?» 6Eles puseram-lhe esta questão, porque queriam apanhá-lo em falso para depois o acusarem.
Jesus, porém, inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo. 7Mas como continuavam a interrogá-lo, levantou-se e disse-lhes: «Aquele de entre vós que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra.» 8Jesus inclinou-se novamente e continuou a escrever no chão. 9Ao ouvirem estas palavras, foram saindo dali um a um, a começar pelos mais velhos, e só lá ficou Jesus e a mulher ao pé dele. 10Jesus então levantou-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» 11«Ninguém, Senhor!», respondeu ela. «Também eu te não condeno», disse Jesus. «Vai-te embora e daqui em diante não tornes a pecar.»]

1. Se o texto do Evangelho de hoje incluísse o versículo 53 do capítulo 7 iniciar-se-ia por um parenteses reto, tal como termina. É que este episódio não consta dos mais antigos documentos e, por isso, se considera que o seu autor não foi o evangelista S. João. Há quem advogue que seria mais plausível ser atribuído a S. Lucas, no seguimento de 21,38. Porém, “a sua canonicidade, o seu caráter inspirado e o seu valor histórico não sofrem contestação” (Bíblia de Jerusalém).
“Jesus sentou-se e começou a ensinar”, isto é, aconchegou-se e iniciou um momento de comunicação com as pessoas que silenciosamente se juntaram para O ouvir. Um amigo meu costuma dizer “agora, ninguém ouve ninguém”. Fala-se e as palavras não assentam, ficam a pairar no ar como bolas de sabão, até que rebentam e caiem. Depois… é preciso tornar a repeti-las, por diversas vezes, para ser ouvidas e produzir o seu efeito. As mais das vezes nem isso, perdem-se completamente, ou seja, não há comunicação. Este é um problema essencial do nosso tempo. Fala-se muito, ou melhor, escreve-se muito no Whatsaap, Facebook e outras aplicações – comentamos, opinamos, gosto, etc – mas, na verdade, não comunicamos, não acrescentamos “valor” à conversa, como se diz na gíria económica, pois, a conversa desta forma é substituída pelo consumo maciço de ‘acontecimentos’. Então, como ensinar em tal ambiência comunicacional? Ora, S. Paulo diz-nos na leitura de Filipenses que, para ele, conhecer Jesus Cristo era o “bem supremo”. Mas, para O conhecer é necessário ouvi-Lo, isto é, parar, ler as Suas palavras nas Escrituras e focar a nossa atenção no que lemos para descobrir o rumo. Em boa verdade, foi o que aconteceu com aqueles que estavam preparados para apedrejar a mulher adúltera. As palavras de Jesus “aquele que nunca pecou que lhe atire a primeira pedra” assentaram nas suas consciências, produziram um efeito, e eles foram-se embora. Ou seja, as palavras de Jesus mudaram o comportamento mesmo daqueles que eram seus inimigos, que ali foram para acusá-Lo. Não há dúvida, como diz o Apóstolo, conhecer Jesus e o Seu ensino através das Suas palavras é um “bem supremo” para quem O quer seguir. 

2. “Jesus, porém, inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo”, algo que é próprio de Deus, na expressão de Moisés: “o Senhor entregou-me as duas tábuas de pedra escritas com o seu dedo divino” (Deuteronómio 9, 10).Aí as palavras ficaram gravadas para sempre, mas o escrito no chão, na terra, é transitório, pois a mais leve rabanada de vento ou os passos de alguém apagam ou alteram o texto. E o que é que terá Jesus escrito? Escrever é representar o pensamento com palavras. Então, o que estaria o Mestre a pensar naquele momento que o levou a escrever no chão? Embora ao longo dos séculos tenham sido muitos os que se aventuraram a interpretar aquele gesto de Jesus, o certo é que nunca ninguém conseguiu decifrar o enigma. Na sua tradução da Bíblia, Frederico Lourenço imagina que Jesus antecipava, por escrito, o que iria dizer adiante: “eu não julgo ninguém” (S. João 8, 15). Aliás, já na conversa com Nicodemos Jesus tinha afirmado: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele”(s. João 3, 17).  

3. Na cena final “Ficaram só dois: a mísera e a misericórdia” (Santo Agostinho, citado por Frederico Lourenço).A mísera, aquela mulher adúltera – de quem nem se sabe o nome – que esperava a sanção correspondente à infração da Lei. A sentença aplicada ao ‘elo’ mais fraco, a mulher, esquecendo o homem com quem ela adulterou. Verdade seja dita, com sinceridade, sem hipocrisia, ainda há bem pouco tempo, o nosso preconceito levar-nos-ia a aceitar aquela situação, o que significava estar naquele local do Templo, de pedra na mão, prontos para a execução. Há no ser humano em geral uma tendência endémica para apontar, julgar e condenar. Por isso, caímos no erro de ‘criar’ um “deus” à nossa medida, que expressa a nossa mesquinhez, o nosso desejo de encontrar factos para condenar, o nosso cariz vingativo. Não é por acaso que os canais televisivos mais vistos e os jornais mais lidos são os que mais frequentemente exploram esse lado “sanguinolento” das relações humanas. Somos assim, e por isso é que Jesus veio, para nos dar “a volta” e nos chamar à humanização do nosso olhar.            
“Também eu te não condeno”, a expressão maior da misericórdia de Deus, a que alguém chama  a quinta-essência do Evangelho. A misericórdia de Jesus por aquela mulher, na situação de mísera, mostra realmente o amor de Jesus sem condições por todos os pecadores. É um amor tão distinto do nosso, tão profundo, que altera a lógica humana das situações e se torna difícil de ser compreendido. Ali, onde tudo se afunilava para um “beco sem saída”, Jesus revela uma outra oportunidade de vida e um horizonte de esperança. É isto que é o Evangelho – segundo o olhar de Jesus – que somos chamados a aceitar e a assumir nas nossas vidas.

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana

 

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