4º Domingo da Quaresma - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 27/3/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
4º Domingo da Quaresma – Ano C
27mar2022


Josué 5,9-12; Salmo 34,2-9; 2 Coríntios 5,16-21
 
S. Lucas 15,1-3.11-32
1Todos os cobradores de impostos e outros pecadores se chegavam a Jesus para o ouvir. 2Por isso, os fariseus e os doutores da lei o criticavam: «Este recebe pecadores e come com eles.» 3Jesus apresentou-lhes uma parábola:
11E prosseguiu: «Um certo homem tinha dois filhos. 12O mais novo pediu ao pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me pertence.” E o pai repartiu os bens pelos dois filhos. 13Poucos dias depois, o mais novo reuniu tudo o que era dele e partiu para uma terra muito distante, onde gastou o que possuía. 14Depois de ter gasto tudo, e como houve muita fome naquela região, começou a ter necessidade. 15Foi pedir trabalho a um homem da região que o mandou para os seus campos guardar porcos. 16Desejava encher o estômago mesmo com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. 17Foi então que caiu em si e pensou: “Tantos trabalhadores do meu pai têm quanta comida querem e eu estou para aqui a morrer de fome! 18Vou mas é ter com o meu pai e digo-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti. 19Já nem mereço ser teu filho, mas aceita-me como um dos teus trabalhadores.” 20Levantou-se e voltou para o pai. Mas ainda ele vinha longe de casa e já o pai o tinha visto. Cheio de ternura, correu para ele, apertou-o nos braços e cobriu-o de beijos. 21O filho disse-lhe: “Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já nem mereço ser teu filho.” 22Mas o pai ordenou logo aos empregados: “Tragam depressa o melhor fato e vistam-lho. Ponham-lhe também um anel no dedo e sandálias nos pés. 23Tragam o bezerro mais gordo e matem-no. Vamos fazer um banquete, 24porque este meu filho estava morto e voltou a viver, estava perdido e apareceu.” E começaram com a festa.
25Ora o filho mais velho estava no campo. Ao regressar, quando se aproximava de casa, ouviu a música e as danças. 26Chamou um dos empregados e perguntou-lhe o que era aquilo. 27E o empregado disse-lhe: “Foi o teu irmão que voltou e o teu pai matou o bezerro mais gordo, por ele ter chegado são e salvo.” 28Ao ouvir isto, ficou zangado e nem queria entrar. O pai saiu para o convencer. 29Mas ele respondeu: “Sirvo-te há tantos anos, sem nunca ter desobedecido às tuas ordens, e não me deste sequer um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos. 30Vem agora este teu filho, que desperdiçou o teu dinheiro com prostitutas, e mataste logo o bezerro mais gordo.” 31“Meu filho”, respondeu-lhe, “tu estás sempre comigo e tudo o que eu tenho é teu, 32mas era preciso fazermos uma festa e alegrarmo-nos, porque o teu irmão estava morto e voltou a viver, estava perdido e reapareceu.”»
 

1. Os dois primeiros versículos do Evangelho de hoje parecem desfasados da parábola que se lhes segue. Os fariseus e os doutores da Lei ao criticarem Jesus por comer com publicanos e pecadores – gente que repudiavam – expunham a sua superioridade moral em detrimento da pessoa de Jesus. O Senhor respondeu-lhes com uma parábola, uma narrativa breve de conteúdo alegórico. O quadro de uma história familiar comum, dois filhos com diferentes modos de olhar a vida numa moldura de amor e misericórdia paternal que enternece. Da parábola ressaltam duas personalidades em confronto. A do filho mais novo: arrebatado, sonhador, inexperiente, anseia a sua independência, disposto a correr riscos, a experimentar a realidade, sofre com os próprios erros, aprende com a vida vivida e volta arrependido. A do filho mais velho: aconchegado na sua condição privilegiada de primogénito, cumpre o socialmente correto e, ciente da sua ‘importância’, exige a dignidade e o reconhecimento devidos. Não compreende nem aceita o regresso do irmão, e, ciumento, muito menos a alegria e o banquete do pai. Como se compreende este conflito familiar! Como sabemos o quanto tais conflitos começam com disputas entre irmãos! Não é verdade que por vezes preferimos mais os amigos que escolhemos, que nos compreendem?! Pois bem, o comportamento destes dois irmãos cabe perfeitamente nos nossos modos de estar, na nossa maneira de enfrentar a vida, de olhar os outros e de conviver ou não com eles. Esta parábola, talvez a mais conhecida do Evangelho, retrata fielmente as personagens de uma família, tal qual as nossas e as que conhecemos nos outros. Mas, além disso, Jesus, com fina ironia, responde ao comentário depreciativo dos fariseus e escribas a Seu respeito. É evidente que no comportamento do filho mais velho está patente o modo de ser daqueles, que se gabavam de serem “justos”, verdadeiros cumpridores da Lei, e “puros” (“Não sou como aquele publicano”- S. Lucas 18, 11). No que nos diz respeito só temos de estar atentos ao que somos (a interioridade da Quaresma) para compreender o epíteto de Jesus aplicado aos por quem veio: “os que precisam de médico”.
 
 
2. Envolvendo estas duas personalidades, a figura do Pai que, com uma particular afeição por ambos, vive acompanhando, compreendendo e gerindo as características dos filhos. Vela pelo regresso do mais novo (ainda ele vinha longe de casa e já o pai o tinha visto”), deixa o coração extravasar a sua alegria e “Cheio de ternura, correu para ele, apertou-o nos braços e cobriu-o de beijos”. Mas, também, perante o azedume do mais velho ao ver a festa em honra do mais novo, tenta convencê-lo a aceitar a alegria do regresso e afirma-lhe “tudo o que tenho é teu”. Um Pai que não desiste do que levianamente o abandonou, nem do que, ruído de ciúme, o criticou asperamente. Um Pai, porém, que aceitando os seus filhos tal qual são, não deixa de valorar o que é mais humano e profundo na vida: “o teu irmão estava morto e voltou a viver, estava perdido e reapareceu”. Que bonita esta alegoria do Pai, persuadindo com amor mas afirmando a grandeza da vida quando transformada por um coração contrito que espera a misericórdia. Só pode ser a imagem humana de Deus, o Pai que ama sem limite, que se dá a cada um de nós em alegria e bondade quando e sempre que renascemos de novo. Se em cada um de nós existem sentimentos que nos identificam com o proceder daqueles filhos, também podemos concluir que existe um Pai que nos ama como aquele. O Deus da nossa vida. Então, “provai e vede que o Senhor é bom; bem-aventurado o homem que nele se refugia” (Salmo 34, 8).
 
 
3. Hoje na nossa Igreja celebra-se o Domingo do Doente. Numa das orações da liturgia do ministério aos enfermos (LIL, pág284) lê-se: “Senhor Deus todo-poderoso, os teus pensamentos não são os nossos pensamentos, nem são nossos os teus caminhos. Confessamo-nos humildes e confusos perante o mistério da dor.”. Mesmo com os avanços científicos e tecnológicos da medicina, as doenças, em particular as crónicas, suscitam-nos muita incompreensão e dúvida que desespera quem sofre – “Deus não me ouve!...” – e abala o(a) cuidador(a), seja familiar ou outra pessoa. Precisamos da humildade do filho pródigo para na nossa fragilidade ‘ir’ ao Pai confiantes na Sua presença e misericórdia. Esta atitude ajuda muito o(a) doente. E, depois, orar, mesmo com lágrimas, “Senhor, supre as carências dos médicos, enfermeiros e outro pessoal cuidador e ajuda-os a confiar na Tua graça e sustenta o(a) nosso(a) doente com o Teu amor”.

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana
 

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