3º Domingo da Quaresma - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 20/3/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
3º Domingo da Quaresma – Ano C
20mar2022

 
Êxodo 3,1-15; Salmo 103,1b-14; 1 Coríntios 10,1-13
 
S. Lucas 13,1-9
1Nessa ocasião chegaram algumas pessoas que contaram a Jesus que Pilatos tinha mandado matar uns homens da Galileia, quando estavam a oferecer a Deus sacrifícios de animais. Deste modo se misturou o sangue deles com o dos animais sacrificados. 2Na sequência disso Jesus disse-lhes: «Julgam que esses eram mais pecadores do que os outros galileus, lá porque foram mortos dessa maneira? 3Digo-vos que se enganam e que morrerão como eles, se não se arrependerem. 4Julgam também que aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé lhes caiu em cima, tinham mais culpas do que os outros habitantes de Jerusalém? 5Pois digo-vos que se enganam e que morrerão como eles, se não se arrependerem.»
6Jesus apresentou-lhes esta parábola: «Havia um homem que tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi lá ver se tinha figos e não encontrou nenhum. 7Ordenou então ao homem que lá trabalhava: “Escuta! Há três anos que venho procurar figos a esta figueira e não encontro nada. Portanto, corta-a. Por que há de ela continuar a ocupar o terreno?” 8Mas o trabalhador respondeu: “Deixa-a ficar ainda este ano, que eu vou cavar em volta e deitar-lhe estrume. 9Talvez assim dê fruto. Se não der, manda-a cortar então.”»

1. O Evangelho de hoje realça duas palavras: arrependimento e paciência.
São duas as vezes que Jesus refere “… Se não se arrependerem”. O arrependimento tem a ver com a nossa interioridade, o nosso pensamento, a nossa vontade, a nossa relação com a fé. É verdadeiramente um tema da Quaresma. Tudo começa pela capacidade de reconhecer o erro, a falha, a omissão, a atitude ou palavra que fere os outros e nos separa de Deus, o pecado. Se tal não for possível então nunca se chegará ao arrependimento. Segue-se o segundo passo, ou seja, a vontade de não reincidir no erro, de corrigir a trajetória, de estar atento para que tal não venha a ocorrer – “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!” (S. Lucas 18, 13). E, finalmente, o arrependimento projeta-se para o exterior e ganha dimensão quando impele à humildade de pedir o perdão de quem foi ofendido(a). Esta atitude nem sempre é fácil, mas será mais plausível quando se fundamenta, pela fé, na humildade de Deus em pessoa, Jesus Cristo – “Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho” (S. Lucas 15, 21). O arrependimento é uma manifestação verdadeiramente humana que, quando assumida em pleno, contém, consciente ou inconscientemente, um princípio de espiritualidade que diz: "aprende com o erro" (Teilhard de Chardin, padre jesuíta, teólogo, filósofo e paleontólogo). Ou seja, podemos ver no arrependimento também o esforço da reconversão, do caminho para a perfeição, do crescimento na fé.         

2. Na segunda parte do Evangelho temos uma parábola bem curiosa, ao sabor da narrativa de S. Lucas. O dono da vinha estava farto da figueira que não dava figos e mandou cortá-la. O homem que cuidava da vinha propôs-lhe “Deixa-a ficar ainda este ano”, vou tratar dela e depois logo se vê. A paciência em ação, uma virtude da nossa exterioridade, uma faculdade de não desistir facilmente, de perseverança, constância, uma capacidade de suportar / aguentar. Exige tempo, escuta, cuidado, por vezes silêncio… e uma boa dose de esperança. Será por tudo isto que o Apóstolo Paulo na sua ode ao amor (I Coríntios 13, 4-7) refere a paciência como a sua primeira característica “O amor é paciente”. Anote-se que se pode amar, devotar-se inteiramente a alguém ou a outros, sem ter fé. Mas, o amor baseado na sinceridade e na humildade, no esquecimento e no dom de si (Rom 12, 9; II Cor 6,6), no serviço (Gálatas 5, 13), provado por atos (II Coríntios 8, 8-11.24)torna a fé efetiva.
Levar o amor a alguém até ao limite da nossa humanidade requer, além do sentimento, a razão que nos determina as decisões e muita paciência. As ocorrências quotidianas desafiam-nos a fazer o que nunca havíamos pensado realizar, levantam dúvidas, põem à prova as nossas certezas, desmontam os nossos saberes e crenças, até, e mostram os espinhos da rosa do nosso amor idealizado. Então, se o amor é para ser usado, temos de juntar-lhe, como nas ementas, uma enorme porção de paciência. E por vezes sentir a dor… O amor tem de ser cultivado, aprendido, e precisa da paciência para o renovar a cada momento, lhe dar continuidade. É por isso que, mesmo independente da fé, quando assente nesta providencia-nos o essencial para “tudo sofrer, tudo esperar, tudo suportar. Depois, como dizia o agricultor da parábola, logo se vê… e a figueira pode vir a dar figos doces como o mel.       

3. Moisés cumpria a sua tarefa diária, apascentar o rebanho de seu sogro, Jetro. Num dado momento olhou para uma sarça que ardia no fogo e viu que não se consumia. Por curiosidade, aproximou-se para ver melhor pois queria saber porque não se consumia a sarça. Então, ouviu uma voz que o chamava “Moisés! Moisés!” e ele respondeu “Estou aqui!”. E assim foi Moisés chamado para uma das mais épicas histórias bíblicas, a libertação do povo de Israel do Egito e a sua condução pelo deserto até à terra prometida. Na sua humildade e porque nunca lhe tinha passado pela cabeça tal façanha, respondeu a Deus perguntando: “Quem sou eu para ir a Faraó e tirar do Egito os filhos de Israel?”.    
A surpreendente misericórdia de Deus pode transformar os nossos dias em ocasiões de conversão e serviço. No nosso quotidiano, entre afazeres, preocupações diversas e desejos mais ou menos satisfeitos, o “Deus escondido” é muito bem capaz de se tornar “visível” em coisas e situações menores, chamando-nos a realidades que não vislumbramos mas que são da Sua vontade amorosa. Basta-nos exercitar a nossa curiosidade, e “ir” (dispormo-nos a) escutar, ver e descobrir o que Ele nos quer dizer. Como escreve Tomás Halík, um teólogo católico romano checo: “Compreender a linguagem de Deus, nos eventos do nosso mundo, exige a arte do discerni­mento espiritual, que, por sua vez, exige um desapego contemplativo das nossas emoções e dos nossos precon­ceitos cada vez mais fortes, bem como da projeção que damos aos nossos medos e aos nossos desejos.”[i]

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana


[i] Tomás Halík, “O Sinal das Igrejas Vazias”, Paulinas, 2020, pág. 8
 

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