COMENTÁRIO BÍBLICO
2º Domingo da Quaresma – Ano C
13mar2022
Génesis 22,1-18; Salmo 116,11-16; Romanos 8,31b-34
S. Lucas 9,28-36
28Cerca de uma semana após ter dito estas palavras, Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago e subiu a um monte para orar. 29Quando estava em oração, o seu aspeto transformou-se e a sua roupa ficou de um branco muito brilhante. 30Nisto, dois homens puseram-se a falar com ele. Eram Moisés e Elias, 31rodeados duma luz celestial, a falar da sua morte que ia cumprir-se em Jerusalém. 32Pedro e os companheiros estavam a cair de sono, mas quando acordaram viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele. 33Quando aqueles homens se iam a retirar, Pedro, sem saber bem o que estava a dizer, exclamou: «Mestre, é tão bom estarmos aqui! Vamos levantar três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.» 34Enquanto dizia estas coisas, uma nuvem envolveu-os na sua sombra e os discípulos ficaram atemorizados quando a nuvem os envolveu. 35Saiu então da nuvem uma voz que dizia: «Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutem o que ele diz.» 36Quando se ouviu aquela voz, Jesus já estava sozinho. Os discípulos calaram-se e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.
1. Domingo passado a ida ao deserto a experienciar a tentação, hoje a subida ao monte para orar. Juntemo-nos aos discípulos Pedro, Tiago e João.
Iam ufanos certamente por terem sido escolhidos pelo Mestre para O acompanharem, mas, cansados pela subida. Chegaram ao alto do monte e acomodaram-se, recuperando forças e ajeitando-se para o momento de oração. Aprenderam que orar com Jesus implica subir ao monte. Desinstalarmo-nos das nossas comodidades e “certezas” e avançar com esforço. No contexto da fé cristã, subir ao alto dum monte significa caminhar em direção a Deus num desejo simples do encontro entre a nossa temporalidade e o eterno. Assim como um caminho de santidade, onde Jesus é ponte entre terra e céu. É Ele que nos ajuda a subir, a contornar os obstáculos da caminhada, é Ele que nos introduz na ambiência orante, é Ele que nos ampara nos momentos de desânimo, porque “ninguém vem ao Pai senão por mim” (S. João 14, 6).
Enquanto orava, os discípulos aperceberam-se da transformação do aspeto de Jesus e do “branco, muito brilhante” das Suas vestes. Algo que os intrigou. Toda a oração, como momento de escuta da voz de Deus – mais do que querermos que Deus nos ouça –, é oração de Jesus, que transforma o nosso “aspeto” e a leitura do que nos rodeia. Assim vivemos a Sua divindade e somos chamados à obediência que Lhe é devida.
2. Tal como vai acontecer mais tarde, no Jardim das Oliveiras, enquanto Jesus orava “Pedro e os companheiros” dormiam. Quando acordaram “viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele” que identificaram como sendo Moisés e o Profeta Elias – a Lei e os Profetas “á conversa” com Jesus, falando sobre a Sua morte em Jerusalém (segundo S. Lucas). Ao parecer-lhes que se iam embora, Pedro, “sem saber o que estava a dizer”, propôs a Jesus o levantamento de três tendas “uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. É de espantar que naqueles dois homens, que viveram centenas de anos antes, os discípulos tivessem “visto” Moisés e Elias e nem por um pouco se tivessem surpreendido ou assustado com tal presença. Por um lado, era patente a sua identidade religiosa e cultural. Não esqueçamos que muitos do povo consideravam que Jesus era Elias (S. Lucas 9, 18-19). Por outro, estavam com Jesus e isso proporcionava-lhes tais segurança e paz interior que Pedro dizia “é tão bom estarmos aqui!”. Bem vai quando em ‘conversa’ com Jesus deixamos de saber o que estamos a dizer… e permitimos que o Espírito Santo nos dirija na relação com Deus.
Porém, enquanto Pedro explicava a sua proposta a Jesus veio uma nuvem que os ensombrou e fez tremer de medo – o imprevisível a ditar as suas leis – e ouviram uma voz que dizia “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutem o que ele diz”. Ou seja, apurai os vossos ouvidos, aprendei de Jesus a “ver” nos sofrimentos do presente lugares de passagem para um futuro alegre, a esperança que só Jesus nos pode conceder.
3. Ao ouvir aquela voz algo se alterou: Jesus já estava só e na Sua forma normal e os discípulos “calaram-se e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto”. Guardaram para si tamanha experiência procurando assimilá-la nos seus contornos e significados. Parece que aí se iniciou o seu processo de “transfiguração”… Sim, porque na transfiguração de Jesus no Monte configura-se, de certo modo, o processo da nossa própria “transfiguração” à luz da fé.
Quantas pessoas estão cientes de que a sua subjetividade é imutável? E dizem “nasci assim e vou morrer assim”. Contudo, no decorrer da nossa vida vamo-nos transformando, pouco a pouco, à medida que participamos da relação social, da coletividade e do encontro com o outro, onde somos agentes de influência e somos também influenciados. “A cada dia já não somos mais exatamente como éramos no dia anterior, pois tivemos vivências diferentes, ouvimos coisas diferentes, tivemos novas experiências. Isso permite reflexões e conduz a renovações.” (Simone Domingues, Psicóloga especialista em Neuropsicologia). Ora, tal desenvolvimento pessoal desenrola-se também na caminhada da fé. É um processo lento e, por isso, há ocasiões em que desesperamos ou cedemos à desistência. Porque nos sentimos “esquecidos” ou “não ouvidos” por Deus, porque as circunstâncias da vida enfraquecem a nossa relação afetiva com o Senhor, porque nos deixamos desviar da Sua ambiência quotidiana. Ou seja, também no exercício da fé devemos estar atentos à nossa própria “transfiguração” seja pelo correr dos anos, pela experiência de vida, pelas tribulações que vivemos, ou pela “sabedoria” que o nosso olhar nos propicia. Não esquecendo que “a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança.” (Romanos 5, 3-4). Ora, no processo de evolução da nossa fé (“de fé em fé” – Romanos 1, 17) isto é tão assim que S. Paulo apela à nossa “transformação” aconselhando: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Romanos 12, 2).
+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana