Ó meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador!

CENTRO DIOCESANO - V.N.GAIA - 21 fevereiro 2013
 

Jesus propôs  mais outra parábola para alguns que se julgavam pessoas muito justas e desprezavam os outros:
«Dois homens foram ao templo para orar. Um deles era fariseu e o outro cobrador de impostos.
O fariseu, altivo, orava assim: “Ó Deus, agradeço-te porque não sou como os outros, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este cobrador de impostos que ali está. Jejuo duas vezes na semana e dou a décima parte de tudo o que ganho.”
Mas o cobrador de impostos ficou à distância e nem sequer se atrevia a levantar os olhos para o céu; apenas batia com a mão no peito e dizia: “Ó meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador!”»
E Jesus concluiu: «Afirmo-vos que o cobrador de impostos foi para sua casa justificado aos olhos de Deus, ao contrário do fariseu. Pois todo aquele que se engrandece será humilhado e todo o que se humilha será engrandecido.» (S.Lucas 18, 9-14)



Prezados irmãos,
 
Paz no nome do nosso Senhor Jesus Cristo.
 
1. Estamos na Quaresma e a expressão do pobre publicano da parábola de Jesus acode ao nosso coração com eco: “Ó meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador!”.
Li há tempos que “a história da salvação não é outra coisa, em definitivo, do que a história dos incansáveis intentos de Deus criador para arrancar o homem da rede do pecado.” Isto é, o nosso Deus procura-nos, como procurou Adão e Eva no jardim do Eden (Gén 3,9), pronto a fazer-nos perceber que não podemos viver sem Ele. É isso que Jesus está a querer dizer-nos através da exclamação do publicano.
 
2. Então, a Quaresma é o tempo de Deus. Aquela ambiência em que, no silêncio, na introspeção, na humildade e até no sacrifício, podemos compreender a nossa condição de pecadores e pecadoras e descobrir a sensação do arrependimento e do desejo de mudança de conduta que nos leva à centralidade de Deus na nossa vida. Jesus deu-nos o exemplo com a ida para o deserto, guiado pelo Espírito Santo, após o anúncio da sua condição de Filho de Deus, ao sair das águas do Jordão, depois de batizado por João (S. Luc 4,1-13).  
 
3. Isso exige de nós esforço e disciplina.
Em primeiro lugar, precisamos de saber olhar para o espelho e, para além da nossa aparência mais ou menos retocada, perscrutarmos o nosso interior, a fim de nos vermos tal qual somos e descobrirmos o que nos separa de Deus e dos nossos irmãos. 
O nosso caminhar na vida é feito de desertos vários, desertos que têm a ver com circunstâncias que nos retiram muitas vezes a nossa identidade, que nos deixam fragilizados e sedentos à míngua de significado, que até nos pode fazem perder o sentido do caminho. É preciso, portanto, que tenhamos consciência de quem somos, daqueles com quem convivemos e da realidade que nos cerca.
 
4. Em segundo lugar, importa que “olhemos” para Deus não como a mera possibilidade de realização do nosso desejo, mas, como a intervenção na nossa história pessoal de uma liberdade que nos interpela e nos provoca para uma contínua mudança e superação do nosso projeto humano.
Deus está para além do que d’Ele pensemos e do que d’Ele possamos dizer, Deus é alguém que nos acompanha, que nos abraça, mas que sempre fica para além de nós mesmos. Existe para além da nossa vontade, dos nossos sentimentos, das nossas maneiras de ver. “Deus é maior do que a nossa consciência e conhece tudo”(I João 3,20) e olha para nós com compaixão, pedindo a nossa humildade para que usufruamos da Sua ação transformadora da nossa visão sobre o mundo. Porque só aí podemos sentir a verdadeira liberdade e a real esperança. E essa é a face redentora da realidade, sentida no bem e no belo, em que o cristianismo acredita. Quem pretende construir partindo de si mesmo e independente de Deus fá-lo-á normalmente à custa dos outros, especialmente dos mais pequenos e dos mais débeis. O adultério de David é disso exemplo (II Samuel 12). 
 
5. “A fé não é uma questão de opinião pública nem tem a ver com o que sentimos acerca de nós mesmos. É a resposta que as pessoas dão ao que se lhes apresenta como uma realidade – uma realidade que as desafia. (…) A fé começa no momento de parar: isto é, no momento em que já não se pode continuar como antes. Mas, ainda mais desafiador é o que envolve mudança e até perda. Se isto for o que realmente parece ser, ideias, hábitos, esperanças, tudo muda e a esta mudança pode até ser dolorosa.” (Rowan Williams, sermão de Natal de 2012).
Ora, com a ida para o deserto, Jesus vem dizer-nos que naquela ambiência árida e desoladora pode estar também a oportunidade, a abertura para o novo e diferente, a luz numa existência de penumbra ou apagamento. E isto porque, estando na ambiência do Pai (“quem me vê a mim, vê o Pai” – S. João 14,9), Jesus encarnado está também na ambiência do caos e do sofrimento do mundo – o mundo em que entrou para o transformar. Ou seja, Cristo está simultaneamente na ambiência do Pai e na ambiência do pecador. Ora, como batizados, também estamos na ambiência de Deus, o Pai, e na proximidade do mundo ao qual Jesus desceu, na proximidade do caos, da ausência de forma da criação caída.
 
6. Devemos rejeitar que a religião “passou de moda”, ou, é um mero problema social. A religião é um manancial de energia e uma fonte de vida, que providencia ao mundo a visão de como as pessoas devem ser consideradas e tratadas (Rowan Williams). Mas, para tal, nós, os que a vivemos com a luz de Cristo no coração, devemos deixar-nos interpelar pelo convite amoroso e libertador de Deus.
 
7. Ouçamos os Profetas. Oseias invoca o caminho pelo deserto, depois da saída do Egito, como um tempo de intimidade amorosa. “… eu a atrairei e a levarei para o deserto e lhe falarei ao coração” (Oseias 2,14). No entender de Isaías o “falar ao coração” quer dizer persuadir, convencer, usando a linguagem do amor e a amizade (Isaías 40,2). Por sua vez, o profeta Miqueias lembra-nos que as ofertas que Deus prefere são a misericórdia, a justiça e a humildade (Miq. 6,6-8). A humildade é o caminho para poder ver-nos tal como somos. É uma porta aberta para reconhecer os nossos erros e começar de novo.
 
8. Sendo esta a minha última Carta Pastoral como Bispo Diocesano, aproveito esta oportunidade para agradecer-vos do coração o amor e as atitudes fraternas com que me cumulastes ao longo dos anos na minha jurisdição diocesana. Tal permitiu que sempre me sentisse amparado no meu ministério. E se em tão longa peregrinação de serviço a minha humana fraqueza alguém agrediu ou beliscou peço humildemente perdão. Confio a Igreja Lusitana ao Supremo Pastor, nosso Senhor Jesus Cristo, e espero continuar a servi-la, na medida da saúde e capacidade que o Senhor me conceder, sempre de acordo com as orientações do novo Bispo Diocesano, José Jorge Pina Cabral, para quem imploro a assistência e o fortalecimento divinos.   
 
9. A Sagração Episcopal do novo Bispo vai ter lugar, querendo Deus, no dia da Festa de S. Marcos, próximo dia 25 de Abril, pelas 15h, na nossa Catedral, em Lisboa. Espera-se que venha a ser mais uma verdadeira afirmação do nosso testemunho cristão na ambiência do Evangelho, à luz da apostolicidade e catolicidade que caracteriza a nossa Igreja. 
Por isso vos peço, orai para que a cerimónia decorra com a dignidade própria do culto que é devido a Deus e seja uma experiência real do Espírito Santo entre nós, e procurai estar presentes com confiança e alegria e, dessa forma, animar o novo Bispo expressando-lhe o necessário amparo para o início da sua ação episcopal.
 
 
Que o Senhor vos guarde e abençoe.
 
Vosso no amor de Cristo,
 
+ Fernando

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