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A riqueza de uma Oração que nos prepara para a noite e para uma morte santa
 
O serviço da Oração da Noite ou de Completas seguido na Igreja Lusitana e nas Igrejas Anglicanas em geral é de uma grande riqueza litúrgica e espiritual. Temo-lo vindo a seguir em conjunto há mais de um ano através da plataforma Zoom e como que já faz parte da nossa vivência litúrgica a meio da semana. As orações que o compõem soam-nos agora mais familiares e o seu ritmo celebrativo já é por nós interiorizado e aceite. Como que já não prescindimos da sua prática.
Como o próprio refere na sua introdução, o Serviço destina-se a «induzir à reflexão e à tranquilização antes do recolher». Sendo um serviço de «Completas» destina-se a completar o ciclo do dia e a preparar-nos para o ciclo da noite, ambos entendidos (dia e noite) como parte integrante, não só da nossa vida física, mas também espiritual.
 
Da noite faz parte o sono, período que não controlamos e que nos expõe a uma certa vulnerabilidade pessoal. Na noite e no sono entregamo-nos e confiamo-nos a Deus, pedindo a sua proteção para este tempo de maior vulnerabilidade e exposição pessoal. Podemos pensar que o nosso descanso e adormecer é também o descanso e adormecer do próprio Deus. Talvez inconscientemente o façamos, dado que pensamos que como não estamos a precisar e a pensar em Deus, o Senhor na sua graça poderá também descansar um pouco de nós. Criamos assim um interregno na nossa relação com Deus e com a nossa vida espiritual. Mas como nos diz o Salmista, Deus nunca para de cuidar de nós: «Deito-me, durmo a noite toda e acordo, porque o Senhor me protege» (Salmo 3,5) e ainda «Quando me deito, adormeço em paz, porque só tu, Senhor, me guardas com segurança» (4,9). Ou seja, no zelo e no cuidado continuo colocado por um Deus que é Pai e Mãe, encontramos o continuar de uma relação e vivência espiritual, mesmo que de tal não tenhamos consciência. De dia e de noite o Senhor está connosco dado que na Jerusalém celestial, na cidade eterna «a cidade não precisa do Sol ou da Lua para a alumiar. A glória de Deus ilumina-a e a sua lâmpada é o Cordeiro … e nela não haverá noite» (Ap. 21, 23-24).

 

O Serviço de Completas, como que nos prepara para este «estar diferente» perante Deus e os outros durante a noite, ou se quisermos, perante o mistério e a novidade de um «tempo outro» que se nos oferece no nosso ritmo quotidiano. De dia vigilantes com Deus e à noite, confiantes em Deus. Ou como refere a antífona própria da Oração da Noite «acordados vigiemos com Cristo, e, dormindo, repousemos em paz». A noite é pois, por excelência, também lugar e tempo da nossa própria existência e relação com Deus, não só no modo como a vivemos mas como confiantemente a preparamos, no assumir da nossa própria fragilidade e necessidade de nos entregarmos nas mãos de Deus e no seu plano de vida para connosco. E para tal «meditamos em silêncio sobre o dia que passou, lembrando as nossas faltas de amor, tanto a Deus como ao próximo» e oramos para que «o Senhor nos proteja durante as horas silenciosas da noite … para descansarmos seguros na constância do seu amor eterno». Estamos assim seguros e prontos para a novidade que a noite nos pode oferecer.

Ao realizarmos o Serviço de Completas como que fechamos um ciclo (o do dia) e nos confiamos a uma realidade outra (a da noite) na qual também a nossa própria morte pode estar inscrita na providência divina. A partida para Deus na semana passada de uma pessoa conhecida, uma jovem adulta muito querida e estimada por todos, e que aconteceu precisamente no decorrer da «nossa (sua) noite», como que aclarou em mim, toda a riqueza deste Serviço de Completas, que nos prepara não só para uma noite tranquila, mas também para uma eventual partida para Deus e para a Sua glória. A riqueza desta celebração litúrgica é neste aspeto também única perante os restantes ofícios diários. De um modo discreto, mas contínuo somos preparados ao longo da Oração para esta real possibilidade que não é assim tão pouco frequente. A realidade de Deus nos chamar para Si durante a noite. Iniciamos dizendo «O Senhor todo poderoso nos conceda noite tranquila e, no fim da vida, morte santa.». Continuamos fazendo nossas as palavras e o sentir do velho Simeão no cântico NUNC DIMITTIS: «Agora, Senhor, pode o teu servo partir em paz, pois cumpriu-se a tua palavra». E terminamos dizendo no responsório «Nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito». O nosso sentir espiritual, as nossas palavras, as nossas orações ao confiarem-se e entregarem-se a Deus assumem desde logo a possibilidade de, no Seu amor, Deus nos chamar a Si.
 
A sabedoria presente na elaboração e formulação desta liturgia de Completas é bíblica e sustenta-se no reconhecimento da brevidade da vida humana dado que «mil anos são para ti como o dia de ontem, que passou, como a vigília da noite. Como corrente de água tu nos arrebatas; não dura mais do que um sonho a vida do homem» (Sl 90, 4-5). Sabedoria que também acolhe e aceita que o tempo de Deus não é o nosso tempo e que nos diz «estejam sempre atentos, porque não sabem nem o dia nem a hora».
 
Tal não nos deve tornar receosos seja do que for, antes pelo contrário nos confere a tranquilidade e a confiança de podermos orar em cada noite : «Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, que a esta hora da noite descansaste no sepulcro e santificaste o túmulo a fim de ser leito de esperança para o teu povo; dá-nos o arrependimento dos nossos pecados – causa da tua Paixão – para que, quando os nossos corpos descerem ao pó, as nossas almas possam viver contigo; que, com o Pai e o Espírito Santo, vives e reinas para sempre». A noite e o túmulo de Jesus tornaram-se leito de esperança para o seu povo pela Sua ressurreição. É esta a esperança que nos anima e conforta em cada dia e em cada noite da nossa existência. É nesta esperança que se sustenta a nossa oração a Deus, hoje e nesta noite também.
 
Em memória de Noémia Afonso que partiu para a glória de Deus na noite de 19 de outubro.

+ Jorge
27 outubro 2021

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