Nesta Quaresma «andemos em novidade de vida»
As nossas rotinas diárias são boas e conferem-nos segurança e pertença. Todos nós somos «animais de hábitos» e executantes de rotinas pré-estabelecidas que nos guiam desde o acordar até ao deitar. Os gestos e as atividades que repetimos diariamente conferem-nos tranquilidade e equilíbrio. É bom saber o que nos espera e também com quem nos vamos encontrar. A repetição de tarefas e o controle de interferências externas, como que nos confere uma maior produtividade naquilo que nos propomos realizar. A rotina e uma boa programação permitem evitar surpresas e contratempos desagradáveis. Permitem ainda que nos possamos manter na chamada «zona de conforto» facilmente controlável e segura. Consciente ou inconscientemente todos nós e nas diversas áreas da vida, criamos padrões de comportamento e rotinas que nos vão conduzindo e consumindo o tempo. Mesmo e talvez mais na área religiosa, a sucessão rotineira de ritos religiosos, serve para enquadrar a nossa vivência e relação com Deus. Tal é natural dado que não há fé sem religião e religião sem ritos. A vivência da fé exprime-se através de ritos instituídos e de símbolos desenvolvidos para esse efeito. Muitas vezes a liturgia torna-se um mero rito a ser cumprido despido de fé e desencarnado da realidade. O problema não está no rito, mas no modo como ele é vivido e encarado.
Deste modo, o nosso caminhar de fé individual e eclesial necessita de tempos diferentes, que nos obriguem a fazer de um outro modo e a pensar de uma outra maneira. Um tempo que nos desinstale das nossas próprias seguranças religiosas e nos abra à novidade, à surpresa e ao mistério de Deus e ao mistério sempre presente na vida dos outros. Um desses tempos litúrgicos é precisamente a Quaresma. Um período de quarenta dias com tempo para acolhermos a novidade sempre inscrita no desenrolar do tempo. Um tempo que não é de condenação antes de conversão, através de um novo olhar, de uma nova sensibilidade e de uma nova prática. O tempo quaresmal pode e deve ser um tempo diferente pelo que de novo e ousado nos propomos realizar e acolher; o realizar de uma visita que foi sendo adiada, o dar tempo diário para o silêncio e o encontro com Deus, a novidade de um arrependimento e de uma confissão sincera, o não adiar de uma conversa franca e amiga, o retomar da leitura regular da bíblia, o assumir de um caminho de reconciliação, a abertura ao inesperado que o quotidiano sempre nos oferece, o deixarmos que o nosso «próximo» nos interpele por muito incómoda que seja a sua situação de vida, o retomar à vivencia eucarística dominical no seio da Igreja congregada e reunida e o contemplar com os olhos de fé da Criação que nos rodeia. O executar sincero e assumido de cada um destes gestos, ações e compromissos, garante uma continua novidade e uma saudável expectativa, capaz de acordar uma fé, quem sabe algo «adormecida» e de «rotinas feita».
Só a vivência da novidade que se nos oferece na Quaresma enquanto caminho de conversão, nos irá predispor para a novidade estonteante da ressurreição de Jesus Cristo na Páscoa. Só um olhar convertido, sensível e aberto à novidade será capaz de identificar os sinais de Ressurreição que uma vez mais, o Senhor nos irá oferecer na celebração da sua Páscoa. A fé pascal não se prende tanto com o compreender e o fazer, mas antes com o saber acolher e aceitar o que Deus nos propõe de amorosa novidade libertadora. Assim foi com o discípulo amado que correndo mais rápido do que Pedro, soube acolher a novidade do túmulo vazio enquanto sinal da Ressurreição do Senhor. Assim foi também com os discípulos de Emaús que acolhendo a Palavra de Deus no seu coração, fizeram um caminho de conversão que os levou, a reconhecer, a novidade da presença do ressuscitado com eles no partir do pão. Assim foi ainda com Tomé que nas chagas do corpo ressuscitado de Cristo percebeu uma presença e um amor extremo que o levou à novidade de uma exclamação de fé sentida e grata: «Meu Senhor e meu Deus !».
Em Cristo ressuscitado tudo é novo dado que a velha ordem do pecado foi vencida. Tudo se sustenta no amor divino transformador que na ação do Espírito Santo é sempre imprevisível, desafiador e capaz de abrir novos caminhos de vida e de relação. Nunca nos esqueçamos que esta Quaresma do ano de 2024 que estamos a viver, já foi precedida pela Páscoa única e irrepetível de Jesus Cristo. Não caminhamos no deserto como o povo de Israel em busca da terra prometida, mas já temos em nós as primícias da Sua própria ressurreição. Como diz S. Paulo aos Gálatas: «Fui crucificado com Cristo. Por isso, já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim». É à luz de Cristo Ressuscitado que estamos a caminhar nesta Quaresma. É com Ele que caminhamos e como outrora aconteceu com os discípulos, na sua companhia tudo é novo e surpreendente. Deus é sempre uma surpresa e uma Graça a ser acolhida. Tudo na vida quotidiana, desde o pequeno e humilde acontecimento até à grande manifestação, constitui uma oportunidade de salvação que nos é concedida.
Este exercício da Oração de Completas que realizamos em conjunto, prepara-nos para a noite, que por sua vez nos vai capacitar para o acolher da novidade do dia de amanhã. O dia de amanhã, que nos é oferecido enquanto dom, não deve ser «mais um dia», mas antes um novo dia que se nos oferece repleto de novidade esperançosa e de surpresas no nosso caminhar quaresmal. À luz do nosso tema sinodal «Chamados à Esperança e Santidade em Cristo» pedimos ao Senhor, que em cada dia, deste caminhar, a nossa Esperança se renove e a nossa Santidade cresça em Cristo e por Cristo. Assim seja.
+ Jorge