HomiliaFestaTodosSantos01112023

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Homilia

Festa de Todos os Santos

1 novembro 2023

«Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém»

Gostaria de começar esta homilia na Festa de Todos os Santos, soltando um conjunto de interrogações que têm voado na minha consciência e no meu pensar nos últimos tempos a propósito desta escalada da guerra, da destruição e da morte na Ucrânia, no Sudão e agora recentemente em Israel e na Palestina.

- como ser santo num mundo manchado pelo pecado humano?

- que santidade e que fé somos chamados a viver ? aquela que nos aproxima ou aquela que nos afasta das realidades sofridas do mundo?

- como manter uma esperança viva e santa num contexto existencial tão apocalíptico?;

- como viver a nossa vocação batismal para a santidade enquanto cidadãos deste mundo?

Em tempos de inquietude e de incerteza as interrogações que a consciência e a fé nos ditam não só são normais como necessárias. São como que uma forma de combater a indiferença e a apatia e de nos manter vivos e inquietos. Quem se interroga ou se deixa interrogar por Deus e pelos acontecimentos da vida, como que está também e desde já a abrir a possibilidade de encontrar um sentido e uma luz no meio das trevas. Estas interrogações são também e como alguém referiu «perguntas a Deus e perguntas que Deus nos coloca». Mas a fé não é mais do que este dialogar existencial com Deus, um dialogar que coloca perante Deus a vida com as suas complexidades, mas também com as sua coisas boas. A matéria do nosso falar com Deus não é mais do que a nossa própria vida, com as suas experiências, acontecimentos e interrogações. E é por isso que hoje estamos aqui perante Deus trazendo o que somos, mas principalmente o que vivemos.

No contexto da Festa que hoje celebramos, as questões que levantamos ou que Deus nos coloca, remetem-nos necessariamente para o Santo de Deus – Jesus Cristo, para a sua vida, para a sua paixão, crucificação e ressurreição. A sua crucificação é o culminar de um caminho de vida e é o evento supremo da sua santidade. Uma santidade que paradoxalmente acontece fora dos lugares santos daquele tempo, fora de Jerusalém, acontece na periferia e não no centro, longe da gente dita santa e religiosa e perto dos que sofrem e são humilhados. Ainda hoje Jesus continua a ser crucificado em lugares que só se tornam conhecidos pelos horrores que aí são cometidos. São o Gólgota, o lugar do Calvário, dos nossos tempos, lugares que saltam para a primeira página dos jornais pelos massacres e horrores que aí se praticam. Lugares aonde ninguém quer estar, mas aonde tudo se joga: a barbárie humana e o sofrimento dos inocentes; o desprezo pela vida e a interpeladora resistência das vítimas. Gólgotas que hoje se chamam Gaza ou o Kibbut Be’eri, Busha e Bakhmut na Ucrânia ou Cartum no Sudão. Nestes lugares em ruínas percebemos a santidade naqueles que resistem e teimam em encontrar sentido para as suas vidas. Percebemos a santidade nas famílias que enterram e choram as suas crianças desfeitas por bombardeamentos bárbaros. Percebemos a santidade naqueles que cuidam dos outros mesmo sem condições e que tudo fazem para salvar vidas humanas sabendo que cada vida, cada ferido, cada corpo que se lhes apresenta é de um valor único e irrepetível.       

No Novo Testamento, e como percebemos no ministério de Jesus, «ser-se santo é estar absolutamente envolvido, e não estar absolutamente separado». Neste sentido, o caminho da santidade aproxima-nos de realidades carregadas de pecado, não para sermos por elas tomados e absorvidos, mas antes e na ação do Espírito Santo as podermos transformar. No passado domingo e no meu caminho de Lisboa para a nossa paróquia da Sagrada Família em Queluz, passei de carro perto da zona do casal Ventoso, que uma vez mais e infelizmente assiste a um recrudescimento do consumo de drogas diversas. Numa manhã chuvosa e fria destacavam-se as luzes quentes e acolhedores de uma rolete de porta aberta e de apoio aos drogados. Um pequeno grande sinal de quem não desiste de estar perto de quem já desistiu de si mesmo e da relação com os outros.  A «matéria da santidade» (podemos dizer) está precisamente no ousar assumir a fragilidade dos outros e as suas necessidades, não procurando impor, mas antes abrindo portas e acolhendo. Estar aonde mais ninguém quer estar e perceber que no outro, neste caso no drogado, não está um criminoso, mas antes um doente que requer atenção e não condenação. Um irmão nosso que Cristo insiste em salvar e não em condenar. Em Cristo percebemos que a santidade nos aproxima da humanidade; da nossa própria humanidade e da humanidade dos outros vivida principalmente no seu drama.

Estes são os bem-aventurados porque no seu choro, na sua fragilidade, na sua mansidão, na sua inocência e dramaticidade de vida, contam sempre, sempre, com o olhar misericordioso e cuidado de Deus. Pessoas concretas com nomes e vidas concretas como eram também aqueles e aquelas que Jesus viu e acolheu no monte das bem-aventuranças. O dizer de Jesus para com eles exprime o Seu agir de misericórdia, de compaixão, de consolação, de justiça. Em Cristo, o Santo de Deus, as bem-aventuranças não são mais do que o seu próprio programa de vida; o que Jesus diz Jesus assume e realiza.

Ser discípulo de Cristo é então participar desta vida nova que Jesus desde logo nos oferece no batismo. «A santidade cristã, antes que um dever, é um dom» que nos é oferecido no batismo. Jesus transmite-nos não só o que tem, mas também o que é e nas palavras de hoje do Profeta Jeremias temos «a sua lei escrita no nosso coração».   Deste modo ser santo não é tanto aquilo que se faz, não é bondade, mas antes o que pela fé e pela oração acolhemos de Jesus Cristo, mesmo e principalmente na fragilidade do barro de vaso que somos. Tudo aquilo que Deus no Seu Amor e misericórdia começou em nós no batismo deve ser vivido em cada dia da nossa existência. A este propósito Sophia de Mello Breyner referiu: «A santidade é oferecida a cada pessoa de novo em cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias». Este quotidiano da santidade que requer sempre uma opção e um sim,  expressamo-lo também na oração do Pai Nosso quando oramos dizendo «santificado seja o teu nome». Reconhecer e afirmar no dia a dia a santidade de Deus que está no céu requer da nossa parte caminhar na terra com os outros e no sentido da nossa própria santificação. O próprio Senhor Deus no-lo refere quando nos diz: «Sejam santos, porque eu sou Santo» ( I Pedro 1,16).

Mas esta é também a festa da memória dos santos que já partiram para Deus e de tudo quanto nas suas vidas foi belo e bom. É a festa da comunhão dos santos que se vive e exprime de uma forma espiritual, mas não menos intensa e real nomeadamente na vivência da sacramentalidade da eucaristia. É a festa de uma Igreja que se percebe inserida numa realidade maior, numa catolicidade e universalidade não só geográfica, mas fundamentalmente temporal e que nos permite desde já celebrar a eternidade que nos espera enquanto filhos e filhas de Deus. É a festa que nos leva aos cemitérios e nos permite celebrar a vida perante a morte dos queridos que já partiram. É a festa que hoje celebramos num contexto de grande adversidade como referíamos no início, mas que nos permite esperar o que ainda não vemos e fazê-lo com a paciência capaz de produzir a esperança.

Assim Deus nos ajude. Amém.

+ Jorge

 

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