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Homilia de 4ª feira de Cinzas 2023
Igreja Lusitana
Dar Voz ao silêncio
 
«Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo»

«Jesus disse mais: «Todo aquele que fizer cair em pecado algum destes pequeninos que creem em mim, melhor seria que atirassem essa pessoa para o fundo do mar com uma pedra de moinho ao pescoço. Aí daqueles que levam os outros a pecar! São coisas que hão de acontecer sempre, mas aí daqueles que forem culpados disso!» (S. Mateus)

O ensinamento e advertência de Jesus aos seus discípulos acabado de ser proclamado no Evangelho desta quarta feira de cinzas ressoa forte e interpelante no contexto do recém divulgado Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI) (www.darvozaosilencio.org) apresentado na semana passada e de que todos ouvimos falar e que a todos nos afetou de uma maneira ou de outra.

Este relatório tem o sugestivo título «Dar Voz ao silêncio» e começa por agradecer «a todas as pessoas, instituições e organizações que contribuíram para a realização deste trabalho» que decorreu ao longo de um ano e dirige-se a «a todas as vítimas que deram voz ao silêncio».

O trabalho realizado definiu como objetivo «o estudo dos abusos sexuais de crianças por membros e/ou colaboradores da Igreja Católica em Portugal, entre 1950 e 2022, para um melhor conhecimento do passado e adequada ação preventiva e de intervenção futura».

Na sua introdução o relatório refere que: «Do ponto de vista psicopatológico, o tema dos abusos sexuais de crianças só recentemente teve um olhar centrado no sofrimento da vítima e no seu impacto traumático posterior. Um marco fundamental dessa evolução é a Convenção para os Direitos da Criança (1989), ao estabelecer artigos na defesa do seu «superior interesse». Os abusos de crianças (menores de 18 anos) são mais comuns do que se pensa. Dados de uma metanálise destacam 18% de prevalência na população feminina e 8% na masculina. Englobam diversas situações atualmente previstas na lei. Em geral, predominam as vítimas raparigas sobre os rapazes, e a idade mais comum do abuso é a pré-adolescente. A maior percentagem acontece de forma continuada, em espaços físicos de socialização da criança, sobretudo na família. São cometidos por abusadores maioritariamente masculinos, muitos fazendo parte do seu universo relacional prévio, contribuindo assim para a sua perpetuação».

O trabalho apresentado refere ainda que : «Tema delicado, pouco estudado em Portugal, os abusos sexuais de crianças na Igreja tomaram uma visibilidade inédita com este Estudo. Havendo vias de comunicação abertas, seguras, independentes para «falar disso», aparecem testemunhos consistentes que são passíveis de tratamento científico. Os abusos sexuais de crianças na Igreja Católica portuguesa existiram no passado e existem ainda no presente. Portugal não é um caso à parte face a outros países. As 512 vítimas diretas põem-nos no encalço de, pelo menos, outras 4300 e, se pensarmos que os abusos aconteciam, na esmagadora maioria dos casos, muito mais do que uma vez sobre a mesma criança, levam-nos a muitos milhares de abusos praticados. Encontrámos, no tempo e no espaço, uma notável diversidade de contextos em que aqueles aconteceram. A Comissão captou a ponta de vários icebergs respeitantes a vertentes deste fenómeno, vividos em certos tempos históricos e lugares institucionais.»

Como nota significativa o relatório refere: «Em alguns contextos, os abusos tiveram carácter sistémico, isto é, ancoravam-se na estrutura de funcionamento de certas instituições da própria Igreja. Uma atitude clericalista, a ignorância ou a desvalorização dos direitos da criança, o fechamento aos olhares de fora, tudo ditou a perpetuação dos abusos e reforçou o silenciamento das vítimas. O carácter sistémico dos abusos não pode, porém, generalizar-se a toda a Igreja, pois diz respeito a uma minoria percentual da totalidade dos seus membros. Sistémica foi a ocultação desde logo ditada pelos próprios, bem como dos superiormente colocados na hierarquia que deles tiveram conhecimento».
Sendo a Igreja Una, como professamos no Credo, aquilo que acontece e diz respeito a uma porção da Igreja de Cristo, neste caso a Igreja Católica em Portugal, naturalmente que implica também e diz respeito às outras Igrejas cristãs. Lembramo-nos aqui das palavras de S. Paulo dirigidas à comunidade em Corinto: «Assim como o corpo é um só e tem muitas partes e todas elas, apesar de muitas, formam um só corpo, assim acontece também com Cristo. Todos nós, judeus ou não judeus, escravos ou livres, fomos batizados num só Espirito, para formarmos um só corpo. E todos recebemos o mesmo Espirito …Se uma parte do corpo sofre, todas sofrem com ela: se outra é elogiada, todas se alegram com isso. Vocês são o corpo de Cristo e cada um é uma parte dele» (I Cor. 14)

É esta comunhão em Cristo enquanto povo de batizados que nos leva a acolher este relatório não como algo estranho à nossa Igreja, mas enquanto realidade que também nos implica enquanto Instituição eclesial. Que nos implica e afeta enquanto irmãos e irmãs em Cristo e também nos desafia e compromete enquanto cidadãos e cristãos dado que o problema da pedofilia e dos abusos sexuais é transversal à sociedade que somos e ocorre na família, na escola, no trabalho, no desporto e em muitas outras áreas da nossa vivência social. Assim hoje a nossa oração está também com os irmãos e irmãs da Igreja Católica em Portugal.

Não somos mais nem menos pecadores do que os irmãos e irmãs de outras Igrejas. Não há Igrejas melhores do que as outras e este mesmo drama dos abusos sexuais a crianças e adultos vulneráveis existiu e existe na Comunhão Anglicana da qual fazemos parte.   Trabalhar pela unidade dos cristãos, como recentemente oramos no oitavário da unidade, requer que nos impliquemos também nas realidades dos outros nossos irmãos por muito exigentes e desafiantes que as mesmas se nos apresentem. Como nos diz Tiago na carta que hoje foi lida, necessitamos juntos de:«corrigir os nossos erros, de purificar as nossas intenções, de reconhecer o mal, de nos arrependermos e de chorarmos».

A quaresma que hoje iniciamos é, pois, o tempo propicio a que tal aconteça. Reconhecer não só os erros e pecados individuais e particulares, mas também os erros e pecados coletivos que ganham força e expressão quando sustentamos sistemas morais, religiosos, económicos e políticos assentes em valores e práticas que colocam em causa a dignidade de cada um e de todos enquanto família humana. Sempre que o pecado desfigura um inocente Deus é desfigurado.

Esta será sem dúvida e por tudo o que atrás já foi referido uma quaresma sofrida e pesada, porque marcada pelo sofrimento que se expressa nos gemidos destes inocentes que corajosamente souberam dar «Voz ao silêncio», nos gemidos das vítimas da guerra na Ucrânia e de muitas outras guerras que assolam o mundo, no gemido da Criação de Deus que continua a sofrer uma exploração desenfreada provocada pela ganância humana e nos gemidos das vítimas dos desastres naturais na Síria e na Turquia. A vivência assumida do caminhar quaresmal que hoje se inicia pressupõe o elevar a Deus da oração litúrgica que diz: «Através de Jesus Cristo Te oferecemos as nossas almas e os nossos corpos, em sacrifício vivo». Este «sacrifício vivo» não é mais do que o aceitar carregar as cruzes do nosso tempo e da nossa própria existência. As cruzes desta quaresma-

Mas a vivência da quaresma, de cada quaresma é sempre feita à luz da Páscoa de Jesus Cristo e dai simbolicamente o Cirio Pascal hoje acesso. Não nos esqueçamos que a Páscoa de Jesus Cristo precede a nossa quaresma ritual e simbólica de 40 dias. A Páscoa de Cristo, foi o seu batismo na paixão, na cruz e na ressurreição da morte para a vida. A Páscoa, ou seja, a passagem de Cristo, carregou o pecado do seu tempo e se quisermos o pecado de todos os tempos. Esta realidade gloriosa, da Sua Ressurreição e que por Amor nos foi oferecida precede a Quaresma e confere-lhe sempre um sentido de luz, de graça e de esperança. Como tal afirmamos e cremos que a quaresma e cada quaresma é tempo de Graça renovada que nos purifica e nos reergue do peso do pecado; «onde abundou o pecado superabundou a graça» (Rom. 5,20) Para que tal aconteça a Igreja chama-nos a todos sem exceção a «observar santa Quaresma, com exame de consciência e arrependimento, com oração, jejum e renúncia, com leitura e meditação da Santa Palavra de Deus e com abertura de coração àquilo que a Graça de Deus em nós quer realizar». No meio das trevas do tempo presente permanece firme a Esperança que Deus nos outorgou em Jesus Cristo.

Nesta quaresma Jesus caminha connosco:

Por vezes Ele irá necessitar que choremos com Ele. Outras seremos nós que iremos necessitar que Ele chore connosco.

Nesta quaresma saibamos também «Dar voz ao silêncio» ou se quisermos aos silêncios que carregamos e ainda nos impedem de ser quem somos.

Saibamos também «Dar voz ao silêncio» dos outros acolhendo os seus dramas e ouvindo as suas histórias.

Esta é, pois, a quaresma que se nos oferece. Saibamos estar à sua altura.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

+ Jorge, 20 fevereiro 2023
 

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