31º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 30/10/2021

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
31º Domingo Comum – Ano B
31out2021 

Deuteronómio 6,1-9; Salmo 119,33-48; Hebreus 7,23-28
 
S. Marcos 12,28-34
28 Chegou um dos escribas e, tendo ouvido a discussão e vendo que Jesus lhes havia respondido bem, fez-lhe esta pergunta: Qual é o primeiro de todos os mandamentos?29Respondeu Jesus: O primeiro é: Ouve, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um só!30e: Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força. 31O segundo é: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes. 32Disse-lhe o escriba: Na verdade, Mestre, disseste bem que ele é um, e não há outro senão ele; 33e que o amá-lo de todo o coração, de todo o entendimento e de toda a força e o amar ao próximo como a si mesmo excede a todos os holocaustos e sacrifícios. 34Vendo Jesus que ele havia falado sabiamente, disse-lhe: Não estás longe do reino de Deus. Ninguém ousava mais interrogá-lo.

1. A pergunta do escriba não tinha por objetivo “encalacrar” Jesus, como ousaram fazer fariseus e saduceus noutras ocasiões. Era sincera e manifestava um honesto desejo de querer saber, ter a certeza. É que na piedade tradicional judaica havia mandamentos e preceitos que chegavam a 613, segundo alguns rabinos. Nesse contexto, levantava-se a questão do saber quais deles eram os mais importantes. E, como se depreende pela resposta do escriba – Na verdade, Mestre, disseste bem” – ele conhecia aqueles mandamentos. O primeiro escrito em Deuteronómio 6, 4-5 – “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força.”, a “Shemá”, a confissão de fé tradicional de Israel. Isto é, para o povo de Israel o amor a Deus não era uma escolha, decorria da sua condição de criaturas de Deus, era um mandamento, e incluía o temor a Deus, a obrigação de servi-lO e observar os seus preceitos. O segundo, que Jesus refere como semelhante ao primeiro, pode ler-se em Levítico 19, 18 – “amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Perguntar, por si mesmo, é já uma manifestação de insuficiência sobre o que temos ou sabemos, uma inquietação que indicia a busca de um sentido ou conhecimento que possa ajudar a viver. Assim, para lá da resposta que procurava face ao excessivo número de leis hebraicas, a pergunta do escriba Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” tem subjacente uma questão: oque é mais importante na minha vida, aquilo que como pessoa religiosa constitui o centro da minha existência? Isto é, este episódio interpela-nos sobre se nos ocorre questionar Jesus a respeito das opções que tomamos e das prioridades que definimos em termos de crenças e valores que determinam o rumo do nosso viver no meio deste exigente tempo de mudanças. Mas, questionar Jesus como? Na leitura atenta da Bíblia, em particular dos Evangelhos, e na reflexão orante sobre os nossos problemas, pois, como Ele próprio nos assegurou, o Pai do Céu na sua misericórdia dá-nos o Espírito Santo (o nosso orientador) quando o pedimos (S. Lucas 11, 13).

2. Jesus resume todos os mandamentos e regras de comportamento humano a uma só atitude: amar, amar sempre e a todos. Aliás, a novidade está em que Jesus alarga o conceito do amor ao próximo a toda a pessoa humana, qualquer que seja a raça, a religião, a nacionalidade, o género e a opção política, ultrapassando o âmbito judaico que se limitava ao povo de Israel. Assim, em Jesus o amor torna-se universal considerando toda a humanidade, sem divisões, como o amor divino. Ou seja, somos parte duma só comunidade de gente que tem de se olhar com misericórdia, em atenção e cuidado, fazendo do problema de cada um(a) o problema de todos, em particular dos mais necessitados, dos pobres, dos idosos e frágeis, dos migrantes que fogem à miséria e ausência de futuro. Nesse amor, que abraça Deus no ser humano, não há divisões, nem indiferença, nem autossuficiência. E Santo Agostinho, no século IV, deixou-nos um conselho: “ama e faz o que quiseres”.   
E Jesus terminou a conversa com o escriba dizendo Não estás longe do reino de Deus”. Não estás longe… Nunca se consegue, fica-se sempre mais ou menos próximo, no quase. É o desígnio da nossa condição de humanos. Se o conseguíssemos, éramos iguais a Deus. O Reino de Deus é algo a alcançar no calcorrear do caminho em retidão, honestidade, sinceridade, verdade e justiça, os alicerces da paz. E só alcançamos esse desígnio fazendo do amor o modo como vivemos todas as coisas no nosso quotidiano, pois reside em nós para ser dado e ninguém pode dizer que não o tem. O Apóstolo Paulo, no texto a que se chama o ‘Hino ao Amor’ caracteriza-o em concreto pelo comportamento que ele suscita: “o amor é paciente, o amor é prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (I Coríntios 13). Tudo, afinal, que se pode visualizar no nosso estar de cada dia, com quem nos encontramos e com Deus.

3. Mas, também, é verdade, amar não é fácil, exige muita humildade e nunca se deixa de aprender. Embora tenhamos o amor dentro de nós, no mais íntimo do nosso ser, porque vimos de Deus, é certo também que precisamos de tempo de adaptação às circunstâncias em que somos desafiados a usá-lo. Porque, como no fado de Amália Rodrigues, há “Amor de mel, amor de fel”. “Amor de mel, amor de flor”, de doçura inefável, que afirma a vida em alegria e nos projeta em esperança. Amor de fel, “amor de dor, amor maior, amor chorado em tom menor”, amor de amar que aperta o coração em desencanto e sofrer… porque tem de ser. Jesus, a propósito do pedido dos irmãos Tiago e João respondeu-lhes com uma pergunta: “podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com que sou batizado?” (S. Marcos 10, 38). Na Sua cabeça o amor pleno, entrega até ao âmago de si, sacrificial, pela salvação da humanidade. O amor de fel que passa pela cruz. Ou seja, não há caminho do amor (santidade) sem renúncia e sem combate espiritual. É o que tão bem nos explica S. Paulo, no contexto da sua vida, ao despedir-se de Timóteo (II Timóteo 4).        
Quantos santos o foram sem saber? ‘Apenas’ porque se esqueceram de si próprios ou renunciaram a si mesmos, porque se gastaram em dádiva gratuita das suas vidas aos outros, porque assumiram fazer o seu caminho em consciência ética e moral. Muitos deles espelham-se nas bem-aventuranças que Jesus proclamou no sermão do monte: “os que são levados pelo espírito a serem mendigos” (Frederico Lourenço), os mansos, os aflitos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz, os que são perseguidos por causa da justiça, os injuriados e perseguidos por amor de Jesus (S. Mateus 5, 1-12). É o que se celebra na Festa de Todos os Santos.     

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana

 

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