24º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 12/9/2021

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
24º Domingo Comum – Ano B
12set2021 

Provérbios 22,1-9; Salmo 125; S. Tiago 2,1-10.14-17
 
S. Marcos 8,27-38 
27Saiu Jesus com seus discípulos para as aldeias de Cesareia de Filipe; e, no caminho, perguntou-lhes: Quem dizem os homens que sou eu? 28 Eles responderam: Uns dizem: João Batista; outros: Elias; e outros: Um dos profetas. 29Ele lhes perguntou: Mas vós, quem dizeis que sou eu? Respondeu-lhe Pedro: Tu és o Cristo. 30 Ordenou-lhes Jesus que a ninguém falassem a respeito dele.
31Então, começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do Homem padecesse muitas coisas, que fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, que fosse morto e que depois de três dias ressuscitasse. 32Isso dizia claramente. Pedro, chamando-o à parte, começou a admoestá-lo. 33Mas Jesus, virando-se e olhando para seus discípulos, repreendeu a Pedro e disse: Sai de diante de mim, Satanás, porque não cuidas das coisas de Deus, mas sim das dos homens. 34Chamando a si a multidão com seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. 35Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida por amor de mim e do evangelho salvá-la-á. 36Que aproveita a um homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida? 37Que daria um homem em troca da sua vida?38Porque, se alguém, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também dele se envergonhará o Filho do Homem quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos.
                              
1. No Evangelho de hoje duas perguntas e uma altercação. Quem dizem os homens que eu sou?”. É de anotar o interesse de Jesus em saber o que as gentes pensavam dEle. Era um homem, no pleno sentido da palavra, e vivia no mundo como as outras pessoas. Mas, Jesus não deu grande importância à informação que recebeu por resposta. A questão maior foi a seguinte: “E vós, quem dizeis que eu sou?”,a que Pedro respondeu: “Tu és o Cristo”, isto é, o Messias, o ungido.
De acordo com alguns historiadores o Evangelho de S. Marcos foi escrito entre os anos 65 e 70 da nossa era, isto é, dezenas de anos depois da morte de Jesus. Também, as recensões que do mesmo foram feitas permitem afirmar que o grande propósito daquele Evangelho foi “testificar que à pergunta sobre quem é Jesus a primeira comunidade cristã respondeu com convicção: Jesus é o Filho de Deus.”[i]Ou seja, parece ser possível entrever que mais do que a autoria da resposta, o que interessa é a declaração comunitária, verdadeiramente uma confissão de fé. É, aliás, essa convicção que leva Marcos a intitular solenemente o seu evangelho: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (v. 1).
Mas, atentemos no seguinte. Os evangelhos sinóticos nada nos dizem sobre a reação emocional dos discípulos à pergunta de Jesus. Apenas a confissão de Pedro. Porém, à luz da nossa condição humana, podemos imaginar o que porventura aquela pergunta os tenha ‘incomodado’. Nada nos é mais difícil do que sermos perguntados de supetão acerca duma pessoa: o que pensas sobre o(a) fulano(a) de tal? Pior, se a pergunta é feita sobre o(a) próprio(a) que a formula: o que é que pensas de mim? Em tais circunstâncias sentimos desconforto, compromisso, responsabilidade por consequências positivas e/ou negativas que possam advir da nossa resposta.            
 
2. Então, ainda com o eco da declaração de Pedro a pairar, Jesus ordenou-lhes que sobre o assunto guardassem segredo e que a ninguém falassem a respeito dele”. O pedido de segredo sobre um assunto é sempre entendido como uma verdadeira manifestação de amizade e muita confiança, pelo que os discípulos devem ter ouvido essas palavras com regozijo. Porém, Jesus aproveita para iniciar a preparação dos discípulos para o que aí vem. E começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do Homem padecesse muitas coisas, que fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, que fosse morto e que depois de três dias ressuscitasse”. Bem, a partir daqui os discípulos devem ter mudado de semblante. Não era isso que ‘esperavam’ do Messias. É que a ideia judaica que na altura se fazia do Messias era a de um conquistador nacionalista e libertador no sentido político (ver Atos dos Apóstolos 1,6). Também, por outro lado, não lhes passava pela cabeça que a salvação que Jesus anunciava ao mundo passasse pela exclusão da religião oficial e das suas autoridades. Então, Pedro, do alto da ‘importância’ que lhe conferia a declaração identitária de Jesus, não se fez rogado, chamou Jesus de parte e começou a admoestá-lo”.O que levou a uma forte reação de Jesus que “virando-se e olhando para seus discípulos, repreendeu a Pedro e disse: Sai de diante de mim, Satanás, porque não cuidas das coisas de Deus, mas sim das dos homens”. Os exegetas bíblicos explicam que o termo grego usado no original do Evangelho para expressar o que se passou entre Pedro e Jesus corresponde a uma situação de ‘encrespação’ mútua. Isto é, Pedro encrespou-se para Jesus e este encrespou-se para Pedro[ii]. A importância do assunto assim o exigia. 
 
3. O que se passou com Pedro e os outros discípulos (S. Marcos 9, 32)é o mesmo que se passa connosco. Deixamo-nos aprisionar pelas imagens que fazemos de Jesus. Uns, numa ‘visão’ espiritualista exaltada, veem-nO como solução para todas as dificuldades e quase que O referem como um amuleto, caindo no perigo de fazer do Cristo um mito sem ligação com Jesus de Nazaré; outros, centrando a atenção no chamado “Jesus histórico”, tendem a esquecer os momentos decisivos na vida de Jesus e a sua relação fundamental com o Pai. Ainda, outros, baseando-se em frases do Evangelho, sem espírito crítico, descobrem nEle ‘bandeiras’ para justificar as suas opções políticas. Por isso muitas vezes somos assaltados por dúvidas e contradições que nos confundem e menorizam a nossa fé. Ora, hoje é dado como provado que, perante os grandes avanços científicos e tecnológicos, em particular nas ciências humanas e da saúde e a enorme qualidade civilizacional que os direitos humanos e a democracia proporcionam, as gentes mantêm em aberto a possibilidade da transcendência e do sagrado nas suas vidas. Ou seja, vêm em Jesus um modelo de verdadeira humanidade e sentem nEle inspiração que lhes traz felicidade e paz.
Então, a grande questão, ontem como hoje, continua: Quem dizemos nós que é Jesus Cristo? Não basta uma frase tirada dos formulários canónicos ou litúrgicos. Antes, importa que façamos um esforço por procurar uma resposta que venha de dentro, que seja nossa. Talvez, até, se nos der mais jeito, possamos formular a pergunta de outra forma: Para nós, crentes, que significa ser cristão? Hoje, Jesus diz-nos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.Difícil de compreender? Como a Pedro, o anúncio da paixão e morte do Messias. Alguém explicou com singeleza que ser cristão é “ter uma relação com o Deus do mistério, e ficar no entanto no mundo tal como ele é.”[iii]
 
+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana


[i] Bíblia de Estudo Almeida, Sociedade Bíblica do Brasil, 1999
[ii] José M. Castillo, “La Religión de Jesús”, Desclée De Brouwer, Bilbao,2017, pág. 332
[iii] Romano Guardini, “O Senhor”, Livraria Morais Editora, 1964, pág. 105
 

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