10º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 6/6/2021

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COMENTÁRIO BÍBLICO
10º Domingo Comum – Ano B
06jun2021

1 Samuel 16,14-23; Salmo 57; II Coríntios 4, 13-5,1
 
S. Marcos 3, 20-35

20Noutra ocasião, Jesus entrou numa casa e mais uma vez o povo que lá se juntou era tanto que eles nem sequer podiam comer um pouco de pão. 21Quando os familiares de Jesus souberam disso foram buscá-lo, pois havia quem dissesse que ele perdera o juízo. 22Os doutores da lei que tinham vindo de Jerusalém diziam: «Está feito com Belzebu.» Outros diziam: «É em nome do chefe dos demónios que ele expulsa os demónios.» 23Então Jesus chamou toda aquela gente para junto de si e propôs-lhes estas parábolas: «Como pode Satanás expulsar Satanás? 24Um país dividido em grupos que lutem entre si acabará por se arruinar. 25Da mesma maneira, uma família dividida contra si mesma não conseguirá resistir. 26Ora se Satanás lutar contra si próprio, e o seu reino se dividir, então não resistirá; será o seu fim. 27Ninguém pode entrar na casa dum homem forte e roubar os seus bens sem primeiro o amarrar. Pois só assim poderá roubar a casa. 28Lembrem-se disto: Deus perdoa tudo, tanto os pecados como as palavras contra ele próprio, quaisquer que sejam. 29Mas aquele que cometer ofensas contra o Espírito Santo nunca mais será perdoado. É culpado de pecado eterno.» 30Jesus disse isto por alguns terem afirmado: «Ele está possuído por um espírito mau.»
31Entretanto, a mãe e os irmãos de Jesus chegaram ao pé da casa. Não entraram, mas mandaram-no chamar. 32Havia muita gente sentada à volta dele e alguém lhe disse: «Olha que a tua mãe e os teus irmãos estão lá fora à tua procura.» 33E ele respondeu: «Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?» 34Olhando à sua volta, para aqueles que estavam ali sentados, disse: «Aqui está a minha mãe e os meus irmãos. 35Pois aquele que fizer a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e minha mãe.»

1. A popularidade de Jesus era tamanha, por força das Suas curas milagrosas, que os doentes acorriam em massa e de forma desordenada onde quer que se encontrasse. Isto não parecia bem à sua família que dizia: “enlouqueceu!”. E até, tentou detê-Lo. Por sua vez, os inimigos figadais de Jesus, os escribas e fariseus, consideravam que estava “possuído por Belzebu”. Na linha do que se lê no A.T. «Tornei-me um estranho para os meus irmãos, um desconhecido para os filhos da minha mãe» (Salmo 69, 9). E o Evangelista S. João é perentório: «Nem mesmo os seus irmãos criam nele» (S. João 7, 5). Jesus era realmente um excêntrico, não porque praticasse excentricidades, mas porque o seu comportamento não se ‘afinava’ pelas regras sociais, morais e religiosas em vigor naquele tempo. Então, para o vulgo “estava fora do centro”, isto é, para lá do que era o modo comum de agir da grande maioria das pessoas, autoridades religiosas incluídas. Porém, podemos dizer que Jesus era realmente um excêntrico, não porque estivesse “fora do centro” mas porque a Sua vida obedecia a um “centro” diferente. Basta lembrar o Seu ensino quando ia sempre para lá do comportamento estabelecido na Lei de Moisés: “podeis ler na Lei isto, mas agora Eu vos digo aquilo”. Na verdade, Jesus trouxe um olhar límpido sobre a pessoa humana, que colocou no centro da Sua praxis e mensagem e delas fez o propósito da Sua vida. E isso O levou à morte. Até aí a Sua ‘excentricidade’ se expôs: «Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem» (S. Lucas 23, 34).
O Apóstolo Paulo procura comparar a loucura de Deus e a sabedoria dos homens. E conclui: «o absurdo de Deus é mais sábio do que os seres humanos e o fraco de Deus mais forte do que os seres humanos» (I Coríntios 1, 25 – tradução de Frederico Lourenço). E no fim, perante o corpo morto de Jesus pendente na cruz, um general romano, um gentio, confessa rendido: «Verdadeiramente este homem era filho de Deus!» (S. Marcos 15, 39). Embora tal declaração não significasse para o declarante o mesmo que para nós, o certo é que os evangelhos sinóticos veem nela o reconhecimento por um gentio (um não crente) da condição sobre-humana de Jesus. Bendita e Santa excentricidade!                    

2. No salmo indicado para hoje o salmista clama: «Ó Deus, mostra a tua grandeza no Céu e faz brilhar na Terra a tua glória!» (Salmo 57, 12). Estaria a pensar certamente numa manifestação esplendorosa da magnificência divina. Um modo de Deus se impor e conquistar o ser humano. Mas não foi esta glória que Deus escolheu. Ireneu, Bispo de Lyon, séc. II, dizia: “A glória de Deus é o homem vivo”. O homem que vive e vivencia a presença de Deus no caminho duma existência com sentido. Por isso é que a verdadeira manifestação da glória de Deus na terra se fez na pessoa e vida de Jesus Cristo, o Homem. Hoje somos atraídos por toda uma panóplia de instrumentos e acontecimentos que produzem satisfações efémeras, instantâneas, que conduzem a vidas alienadas e, por vezes, absurdas, sem sentido. Como Miguel Torga podemos dizer “temos tudo, falta-nos o essencial”. Ora, é perante tal situação que se torna essencial ter consciência de que “somos convidados a entrar numa vida que é simplesmente o amor que Deus deseja partilhar connosco” (Carta de Taizé). É esta a glória de Deus. Ser tomados pelo amor de Deus e ‘ver’ as nossas vidas transformadas à medida do espírito com que somos bafejados.  
Mas, cuidado, isto não pode ser espiritualidade balofa, tem de ter consequências. Como escreve a monja beneditina americana Joan Chittister: “Estamos tão concentrados na religião que esquecemos a retidão”. Ora, por retidão entende-se a integridade de caráter. Isto é, a vida em Deus, segundo Jesus Cristo, é uma realidade existencial que transforma a pessoa toda e a faz ‘imagem’ da glória de Deus.  
 
3. A leitura do Antigo Testamento de hoje (1 Samuel 16,14-23) apresenta-nos um episódio de grande humanidade. Saul foi eleito rei e assim se instituiu a realeza entre o povo de Israel. Porém, em certa altura da sua vida foi acometido de uma doença, uma espécie de transtorno psiquiátrico que o atormentava com ataques («o espírito do Senhor tinha-se retirado de Saul» I Samuel 16, 14). Os seus oficiais aconselharam-no a encontrar alguém que tocasse bem a harpa para que ao ouvir a música na altura das crises se acalmasse. Assim aparece David a tocar para Saul: «Quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, David tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele». O efeito terapêutico da música no espírito humano.        
Em termos científicos já não há dúvidas de que a música tem um impacto nas emoções, no comportamento e até na saúde de cada um de nós. Na verdade, quando ouvimos música algo se repercute em diversas áreas do nosso cérebro. A música, como escreve o Maestro português Sequeira Costa, tanto acalma e apazigua como sobressalta e magnetiza, “humaniza, harmoniza e contemporiza.”[i]
Porém, tenhamos presente que a música pode lavar-nos a alma, serenar-nos em momentos de crise ou de tormento, mas, “não nos torna melhores, quer dizer, não possui o poder de melhorar cronicamente a nossa vida moral, nem implica necessariamente a excelência das virtudes.”[ii]

+ Fernando 
Bispo Emérito da Igreja Lusitana


[i] Sequeira Costa, in “Poema do Dom”, “A Música e o inefável”, de Vladimir Jankélévitch, Edições 70, 2018
[ii] Vladimir Jankélévitch, “A Música e o Inefável”, idem, pág. 134

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