6º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 13/2/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
6º Domingo Comum – Ano C
13fev2022

Jeremias 17,5-10: Salmo 1; 1 Coríntios 15,12-20

S. Lucas 6,17-26
17Jesus desceu com eles o monte e chegou a um lugar plano com muitos dos que o seguiam. Estava ali uma grande multidão vinda de toda a Judeia e de Jerusalém, e das cidades costeiras de Tiro e Sídon. 18Tinham vindo para ouvir Jesus e para ser curados dos seus males. E os possuídos de espíritos maus foram igualmente curados. 19Toda a multidão tentava tocar Jesus, porque dele saía poder que sarava os que lhe tocavam.
20Jesus olhou para os seus discípulos e disse-lhes:
«Felizes os pobres, porque vos pertence o reino de Deus.
21Felizes os que agora têm fome, porque serão satisfeitos.
Felizes os que agora choram, porque hão-de rir.
22Felizes serão quando as pessoas vos odiarem, rejeitarem, insultarem e difamarem por serem seguidores do Filho do Homem. 
23Alegrem-se quando isso acontecer, saltem de contentamento, porque no céu serão largamente recompensados. Foi assim que os antepassados dessa gente maltrataram também os profetas.
24Mas ai dos ricos, porque já vos foi dada a recompensa.
25Ai dos que agora estão fartos, porque irão passar fome.
Ai dos que agora se riem, pois vão ter muito que lamentar e chorar.
26Ai, quando toda a gente vos elogiar, porque era assim que os vossos antepassados tratavam os falsos profetas.»

1. O Evangelho deste Domingo faz-nos lembrar S. Mateus 5. Nalguns pontos são equivalentes. Mas a versão de S. Lucas traz-nos diferenças que importa ter em conta.
Em primeiro, é o Semão da Planície. Ao contrário do Sermão do Monte, em Mateus, Jesus que tinha passado a noite em oração, no monte, e depois escolheu os doze apóstolos, “desceu com eles o monte e chegou a um lugar plano”onde se encontrava “uma grande multidão” cujas pessoas “tinham vindo para ouvir Jesus e para ser curados dos seus males”. Aqui não podemos insinuar uma relação entre este Sermão e a “visão” de Moisés a receber as tábuas da Lei no monte Sinai (Êxodo 20). Na narrativa de Lucas Jesus vem falar às pessoas que O esperavam, vem juntar-se aos que dEle necessitavam, por razões de doença ou de orientação, e, no seu meio, dirige-se-lhes usando a segunda pessoa, em vez da terceira como em Mateus. É um pormenor característico de Lucas, que apresenta Jesus na relação com as pessoas em estilo direto, simples e pessoal.
Uma segunda diferença, enquanto em Mateus há 8 bem-aventuranças, em Lucas temos 4 bem-aventuranças e 4 maldições. As de Mateus “traçam um programa de vida cristã com promessa de recompensa celeste” (Bíblia de Jerusalém), mas no relato de Lucas sugerem-se mudanças de situações nesta vida. Como: Ai dos que agora estão fartos, porque irão passar fome. Ai dos que agora se riem, pois vão ter muito que lamentar e chorar”.Frederico Lourenço, na sua versão da Bíblia, explica que a palavra do texto grego para riso é o de “hostil de escárnio: denunciador de comprazimento na superioridade própria e na inferioridade alheia”. E conclui: “assim, a ideia que subjaz a estas afirmações de Jesus pode ser, no segundo caso (v. 25), ‘ai de vós que agora estais na mó de cima (= que agora rides), porque chegará o momento em que estareis na mó de baixo’”. Ou seja, as 4 imprecações mostram-nos que o relato de Lucas está ligado à relação entre pessoas e a uma preocupação humana dum estilo de vida centrado na confiança em Deus e no seguimento de Jesus como referência ética do Reino de Deus.     

2. As traduções bíblicas atuais usam em vez de “bem-aventurado” a palavra “feliz”.
‘Aventurado’, segundo os dicionários, diz-se de alguém que se aventurou, que foi ousado. E o verbo ‘aventurar’ significa pôr ou pôr-se em risco, arriscar, dizer ou fazer algo sem certeza. Ou seja, um(a) aventurado(a) é alguém que se assume na vida, com espírito positivo, aceitando o risco, caminhando em frente, confiante, mas sem certezas. Nesse sentido, é alguém que vive em processo, sujeito às realidades dos altos e baixos da vida, trabalhando pelas suas ideias e seus sonhos, sofrendo e arrostando com as intempéries e sempre pronto para recomeçar.
‘Bem-aventurado’ diz-se de quem tem prosperidade, quem é próspero e afortunado. Ou seja, quem do seu processo de vida tem avaliação positiva. Por isso se traduz “bem-aventurado” por “feliz”. No entanto, é preciso ter em conta que o modo como se “vê” a felicidade hoje está cheio de estereótipos de materialidade (riqueza, diversão, sucesso e fama) com que a publicidade nos vai “enformando” e, por consequência, “formatando” o nosso modelo de felicidade. Além disso, a sociedade secularizada, para quem Deus não conta, alarga o conceito de felicidade à medida do que cada um entenda, o que pode inclusive ser contraditório. Ora, as “Bem-aventuranças” apresentadas por Jesus apontam para uma “realidade” espiritual como pano de fundo para um novo modo de estar que não se compadece com a felicidade como mera materialidade no viver.

3. Na verdade, o que nos pode tornar pessoas felizes está no nosso modo de viver, isto é, no que vivemos e no como vivemos. Os problemas acodem-nos e a ânsia daquilo que não temos também. Se nos consideramos o ‘centro do mundo’ é provável que não consigamos vislumbrar nem saborear a alegria duma dádiva gratuita. Então, é natural que percamos a linha do horizonte. (Pe. Vitor Gonçalves, “Voz da Verdade”, 13fev2022). Ora, o que Jesus nos aponta nas “Bem-aventuranças” é um verdeiro horizonte de vida para que nos alerta o profeta Jeremias: Bendito o homem que confia no Senhor e cuja esperança é o Senhor” e compara-o à “árvore plantada junto às águas (…) e não receia quando vem o calor, mas a sua folha fica verde; e, no ano de sequidão, não se perturba, não deixa de dar fruto” (Jeremias, 17, 7-8).
Em suma, ao atentarmos nesta versão das “Bem-aventuranças”, de S. Lucas, percebemos que o que é importante na vida são as decisões que tomamos que nos aproximam de Deus e das necessidades dos outros, que nos revelam como seres de ‘dádiva’, e não só de ‘recebimento’, que não têm a fartura como propósito essencial.

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana

 
 
 

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