Homilia nas celebrações de 4ª Feira de Cinzas 2020

«Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo»

«ouviram o que foi dito … mas eu digo-vos mais» (Mateus 5,21)

Prezados irmãos e irmãs em Cristo,

Nos últimos quatro domingos escutámos no Evangelho proclamado o discurso feito por Jesus na Montanha. Neste discurso Jesus apresenta as famosas «seis antíteses», cujos temas são : o homicídio, o adultério, o divórcio, o perjúrio, a lei de talião e o amor ao próximo. Cada uma destas seis antíteses abre com as palavras de Jesus: «Ouviram o que foi dito … mas eu digo-vos mais» (Mat. 5,21). Com esta chamada técnica de contraponto, Jesus não quer que se desperdice nada do Antigo Testamento, ele próprio refere : «Não pensem que eu vim para acabar com a Lei de Moisés ou com o ensino dos profetas. Não foi para isso que eu vim mas para lhes dar cumprimento» (Mat 5, 17). Não pondo em causa o ensino da Lei e dos Profetas, Jesus porém, vai mais além. Para Ele o espírito da Lei é mais importante que a letra da lei. Deste modo Jesus abre-nos novas perspetivas de em liberdade e responsabilidade nos relacionarmos com Deus e com o próximo. O que está em causa já não é apenas o cumprimento de uma norma mas antes a realização e a prática assumida do amor e da bondade que essa mesma norma encerra. Não basta não matar mas há que ir mais além como; não nos irritarmos, não insultarmos, não rebaixarmos o próximo. Não basta não cometer adultério mas há que ir mais além, como não olhar com más intenções para uma mulher ou para um homem. Não basta amar o próximo e desprezar o inimigo mas há que ir mais além como ter amor ao inimigo e pedir a Deus por aqueles que nos perseguem. Existe pois um potencial enorme de realização e da prática do amor que Jesus abre e oferece aos seus discípulos. Já não apenas o cumprimento de um conjunto de normas específicas mas antes a aplicação concreta do mandamento do amor nas circunstâncias diversas (e por vezes complexas) que a vida nos oferece. Jesus aponta-nos metas que vão para além do mero cumprimento da Lei. Metas que nos indicam um caminho a seguir por cada um em plena liberdade e responsabilidade pessoal. Deste modo o discípulo de Jesus não tem a vida regulamentada mas antes orientada para Deus e para o próximo. Requer-se então um maturar de um discernimento pessoal nas questões ligadas à ética, à moral e à própria vida. No seu amor Jesus acredita em nós fazendo-nos sujeitos de interpretação e de ação e não apenas de mero cumprimento de normas previamente estabelecidas.

Percebemos que a complexidade de muitas das opções éticas e morais que somos chamados a assumir requer cuidadoso discernimento. E só deste modo poderemos crescer em responsabilidade e humanidade. Por isso é fundamental o diálogo, o debate e o respeito pelos diversos pontos de vista em confronto seja qual for o tema ou o assunto em discussão. Uma sociedade que aceita este caminho no final estará mais adulta e amadurecida. Ou seja, mais democrática.

«A graça da fé»é que neste processo (poderemos dizer de continuo discernimento) não estamos sozinhos. O que Jesus nos pede Ele mesmo realiza. A sua exigência para com os seus discípulos e para connosco hoje e que se sintetiza no «mas eu digo-vos mais» é a mesma exigência que o filho de Deus feito homem assume no seu próprio caminhar de vida. No caminho que nos abre, Ele mesmo na ação do Espírito Santo caminha connosco. Deste modo percebemos, que os Dez Mandamentos como toda a Escritura, necessitam de ser interpretados através da vida, do ministério, dos ensinamentos, da paixão, da morte e da ressurreição de Jesus. Somos chamados tal como Jesus, a fazer ativamente o bem e não nos contentarmos apenas em não fazer o mal. Como tal, o grande ensino de Jesus esteve mais naquilo que fez do que propriamente naquilo que disse ou verbalizou. Exemplo disso é o seu próprio corpo pendurado e trespassado na cruz do calvário. Ai percebemos a expressão plena de um amor que se assume na dádiva de si mesmo, assumindo a dor, a humilhação e a entrega da própria vida e tudo colocando em confiança e obediência perante Deus Pai : «Pai se for do teu agrado livra-me deste cálice de amargura. No entanto, não se faça a minha vontade, mas sim a tua» (Lucas 22,42). Como escutámos hoje : «quem vive unido a Cristo torna-se uma pessoa nova. As coisas antigas passaram. Tudo é novo» (II Cor. 5,17). Cristo ressuscitado é pois a nossa primeira e última referência ética e moral e é nesta relação pessoal e viva que necessariamente se joga o nosso discernimento e consequente ação de vida.
 
É então nesta abertura a tudo aquilo que Cristo quer realizar em nós que devemos assumir e encarar esta Quaresma.

É como que uma nova partida, mais uma ocasião, é o tempo oportuno no qual e nas palavras do profeta Joel que escutámos Deus nos diz : «Convertei-vos a mim de todo o coração, com jejum, com pranto, com luto. Rasgai os corações não as roupas. O que é preciso é mudar o vosso coração. Convertam-se portanto ao Senhor vosso Deus» (Joel 2,13).

Para nós é mais fácil rasgar o exterior (as roupas) e mais difícil rasgar o coração. E por isso muitas vezes na Quaresma nos refugiamos na exterioridade do cumprimento de um conjunto de ritos e de preceitos. Mas hoje e aqui ouvimos e acolhemos novamente as palavras de Jesus : mas eu digo-vos mais. Se estamos hoje aqui é porque queremos crescer nesta Quaresma. Queremos amar mais a Deus e ao próximo. E nesse sentido, e na sua bondade e em cada dia da Quaresma, Jesus vai nos interpelar para que possamos crescer em santidade. E vai-nos interpelar através das situações comuns do nosso dia-a-dia, seja, na família, no trabalho, na comunidade ou na Igreja. Situações e contextos do dia-a-dia em que teremos oportunidade de amar a Deus e ao próximo.

E é assim que queremos e desejamos uma Quaresma santa, ou seja, modelada pelo ritmo do culto e do serviço, do amor a Deus e ao próximo.

Ámen.
 
+ Jorge

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