Agradeço desde já o convite que me foi feito para estar presente neste encontro e na pessoa da Srª Drª Isabel Ferraz saúdo com muita alegria e carinho os membros do Rotary Clube de Coimbra. Tendo sido convidado na minha qualidade de Bispo permitam-me que aborde o tema desta noite sustentado naturalmente no contexto e na vivência eclesial da qual faço parte.

Sou Bispo da Igreja Lusitana que pertence à Comunhão Anglicana. Somos por isso uma Igreja que está em plena Comunhão com a Sé de Cantuária em Inglaterra e reconhecemos o sr Arcebispo de Cantuária como um «primus inter pares» e um líder espiritual. Somos assim uma Igreja nacional integrada numa grande família eclesial mundial. Desde 1880 ano da sua fundação em Lisboa a Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica adotou o lema : «Unidade no certo, liberdade na dúvida e caridade em tudo». Sendo uma Igreja que procura conciliar a dimensão Católica com a dimensão Evangélica integramos naturalmente diferentes sensibilidades eclesiais e somos geralmente chamados de Igrejas que fazem a «Ponte» entre o Catolicismo Romano e o Protestantismo Histórico.

O lema «Unidade no certo, liberdade na dúvida e caridade em tudo» atribuído a Santo Agostinho, assume desde logo a tensão, se quisermos por vezes até o conflito natural que se encontra no seio da própria Igreja enquanto instituição humana, com diferentes tradições no seu seio em função da sua própria universalidade e multiculturalidade. Ser Igreja e viver a Missão da Igreja no contexto Asiático é naturalmente diferente da Missão no contexto Africano ou por exemplo a missão da Igreja no contexto Europeu é diferente da do contexto Americano. A Igreja é pois diversa porque a humanidade também é em si mesma diversa. E a Igreja é diversa também porque uma das suas marcas estruturantes é a sua própria catolicidade ou seja, universalidade. Esta marca foi conferida pelo próprio Senhor da Igreja quando disse aos seus discípulos: «Vão por todo o mundo e preguem a Boa Nova a toda a gente»( Marcos 6,15)

Sendo uma Comunhão de Igrejas presente em mais de 165 países a Comunhão Anglicana encerra pois uma riqueza e uma diversidade grande de raças, línguas, culturas e tradições que trazem muitas vezes uma natural tensão. O papel e o reconhecimento por exemplo da posição da mulher na sociedade não é o mesmo em África ou na Europa Ocidental. A própria vivência, entendimento e expressão da sexualidade diferem também conforme os diferentes contextos culturais. A própria estrutura familiar e consequente conceito de autoridade vive-se e exprime-se hoje de forma diferente consoante os diferentes contextos.

O debate no seio da Comunhão Anglicana tornou-se assim muitas vezes polarizado e extremado particularmente à volta das questões ligadas à sexualidade humana e à ética sexual. O tema da homossexualidade tem gerado desacordos teológicos no seio da Comunhão Anglicana que muitas vezes levam a conflitos e divisões. Será a homossexualidade em si mesmo um pecado? Como criar espaço para o casamento religioso dos homossexuais ou a para a bênção de relações homossexuais? Como interpretar a sexualidade à luz do ensinamento Bíblico do Antigo e Novo Testamento? Outro importante debate prende-se com o feminino no contexto religioso. Que lugar e papel para as mulheres em contextos religiosos habitualmente patriarcais? Que fundamentos teológicos para justificar a ordenação de mulheres ao ministério ordenado e inclusive ao Episcopado? Como conciliar neste caso a Tradição da Igreja com a inovação suscitada pelo Espírito Santo ?

Ao longo, podemos afirmar principalmente das duas últimas décadas, o debate (à volta destas questões) tornou-se muitas vezes intenso e gerador de conflitos trazendo uma certa vulnerabilidade interna. No seio da Comunhão Anglicana temos hoje Igrejas que já ordenam mulheres e inclusive têm mulheres no Episcopado. Outras ainda não o permitem. Outras há que já aceitam e realizam o casamento entre homossexuais enquanto outras se opõem fortemente a esta possibilidade.

Neste contexto eclesial também marcado por um contexto cultural mais vasto em acelerada e permanente mudança uns temiam e temem o fim da fé e da Igreja tal como a conhecemos e a recebemos. Outros sentem o medo de não serem aceites no seio da própria Igreja dadas as suas orientações sexuais. Outros ainda tem receio de levantar questões assumidamente polémicas e outros sentem-se incapazes sequer de com elas serem confrontadas. Diferentes pontos de vista bíblicos e teológicos, levam naturalmente há existência de tensões e de ansiedades que nos tornam vulneráveis. A grande questão que aqui se coloca é a de sabermos viver com a nossa própria vulnerabilidade. Para nós cristãos a Bíblia confere-nos o modelo a seguir. Jesus aceitou a vulnerabilidade de ser humano. Em tudo foi igual a nós mas os seus medos no jardim do Getsémani na véspera da sua morte foram respondidos pela sua confiança em Deus que o resgatou do desespero e da morte. Paradoxalmente e no ensino cristão quanto mais fracos mais fortes ! A este propósito S. Paulo afirma na sua carta aos Corintios: « Alegro-me portanto, com as fraquezas, as injurias, as privações, as perseguições e as angústias, que passei por amor de Cristo. Pois, quando me sinto fraco, então é que sou forte»(II Corintios 12,10). É importante então perceber e aceitar que todos somos vulneráveis e é nesta nossa fragilidade que vivemos as grandes questões, desafios e conflitos da nossa própria existência individual e coletiva.

No que concerne à questão da homossexualidade (um dos temas de tensão e de conflito) a Conferência de Lambeth de 2008 (Conferencia que reúne os bispos anglicanos em todo o mundo) expressou o compromisso de «escutar a experiência das pessoas homossexuais». Este principio da escuta e do diálogo parece-me muito importante no contexto da vivência dos conflitos. Com efeito, o compromisso de escutar e de dialogar com aqueles que pensam diferente de nós não significa que no final se aceite a posição daqueles ou daquelas com quem estamos a falar. Mas significa (na perspetiva da fé)  que desejamos escutar a voz de Deus a falar-nos através dos outros e particularmente da sua diferença. E significa também algo de muito importante que é o facto de respeitarmos aqueles com quem discordamos e estarmos abertos a aprender novos caminhos de escuta e de fala. É o que podemos chamar de um diálogo respeitoso assente no respeito pela dignidade própria de cada pessoa independentemente da sua raça, cultura, condição social e orientação sexual. Para nós cristãos, e através da revelação bíblica, percebemos que cada ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus. Tem uma dignidade e um valor próprio que lhe advém de ser criado e amado por Deus. E porque todos somos criados por Deus e temos a mesma origem, também, a dignidade é igual para todos sem exceção. Nenhum conflito ou diferença de opinião poderá então colocar em causa a dignidade do próximo que no entendimento da fé é também meu irmão em Jesus Cristo.

Esta dimensão relacional no respeito pela diversidade que nos assiste e na compreensão da importância do outro para a minha própria realização enquanto pessoa, levam-me a incluir aqui o contributo dado pelo Arcebispo Anglicano Desmond Tutu, laureado com o Prémio Nobel da Paz, que sustentado na sua fé, tradição e cultura Africanas ajudou a desenvolver o conceito e a vivência do Ubuntu.
Ubuntoé um conceito algo difícil de transpor para a linguagem Ocidental. Fala-nos daquilo que é a essência do ser humano. Quando em África se quer reconhecer e distinguir alguém afirma-se : «Yu, u Nobuntu»; ou seja, ele ou ela têm Ubuntu. Tal significa que eles são generosos, hospitaleiros, amigáveis, e que tratam os outros com carinho e compaixão. Eles partilham aquilo que têm. Também significa que a minha humanidade está de uma forma intrínseca ligada à humanidade dos outros. Pertencemo-nos numa rede de relação de vida. Dizemos também, que «uma pessoa é uma pessoa através dos outros». Sou humano então porque pertenço, participo, e partilho com os outros. Uma pessoa com Ubuntu é aberta e disponível para os outros. É uma pessoa que afirma os outros e não se sente ameaçada por os outros serem capazes e bons. Assim somos diminuídos quando os outros são diminuídos e humilhados, quando os outros são torturados e oprimidos. O conceito Ubuntu pode-se então resumir na seguinte frase : «Eu sou porque tu és; eu só posso ser pessoa através das outras pessoas». Ou seja o Ubuntu faz-nos perceber que, para sermos realmente humanos, precisamos de encontrar a nossa individualidade dentro da comunidade movendo-nos da independência para a interdependência.

Parece-me pois que o grande caminho para evitarmos e prevenirmos conflitos é o de uma educação sustentada numa vivência aberta e relacional com o outro e com a diferença que o outro naturalmente carrega em si. Quanto mais educarmos as nossas crianças para a relação na diversidade e mútua colaboração mais elas serão capazes de enfrentar os desafios do tempo presente. Através da cultura e da educação muitos conflitos previnem-se. Não nos esqueçamos que o desconhecimento sobre o outro é o que leva muitas vezes ao medo. E o medo é a porta aberta para o conflito.
Mas também é verdade que na complexa teia relacional em que estamos inseridos, seja na família, na escola, no trabalho, na Igreja, na sociedade e noutros espaços e áreas, somos muitas vezes e sem querer envolvidos em conflitos ou se quisermos numa cultura de conflito muitas vezes alimentada pelos próprios midia na sua ânsia de cativar e explorar audiências (é a lógica do «Prós e Contras»).

Importa pois ser realista e perceber que a vivência da própria experiência do conflito, na qual muitas vezes somos envolvidos contra a nossa própria vontade, é uma realidade que nos toca a todos e com a qual todos podemos e devemos aprender. Qualquer experiência de vida mesmo (e principalmente) as negativas encerram em si um potencial de aprendizagem e de mudança.

A este propósito deixem que partilhe novamente uma ilustrativa e significativa experiência decorrente da vivência Anglicana e que se prende com a «Cruz de Pregos». O nome «Cruz de Pregos» tem a sua história na Segunda Guerra mundial quando as bombas alemãs destruíram a Catedral de S. Miguel em Coventry. No meio do bombardeamento e dos escombros, um padre recolheu três grandes pregos do telhado forjados na Idade Média e amarrou-os com um arame em forma de cruz. Após o terrível bombardeamento o Deão da Catedral escreveu nas paredes destruídas do santuário:«Pai perdoa». A Cruz de Pregos é um poderoso e inspiracional simbolo em todo o mundo da reconciliação e da paz. Depois da Segunda Guerra Mundial, as cruzes de pregos foram apresentadas nas cidades alemãs de Berlim, Dresden e Kiel também elas destruídas pelos bombardeamentos aliados. Das cinzas nasceu uma confiança e colaboração entre Coventry e as cidades alemãs. Atualmente existem mais de duzentas comunidades parceiras da Cruz de Pregos espalhadas por 45 países no mundo. Todos os membros aderem a três princípios: sarar as cicatrizes da história, aprender a viver com a diferença celebrando a diversidade e construir uma cultura de paz. O trabalho destas pessoas está focado na reconciliação politica, racial, religiosa, social e económica. Eles enfrentam conflitos violentos e de guerra, e nos pós conflito restauram a confiança e promovem a reconciliação. Os seus membros apoiam-se uns aos outros, oram uns pelos outros e partilham entre si os seus recursos. A sua atuação tem feito uma diferença significativa quer para as comunidades locais quer para a vida de pessoas concretas.

Não basta pois «gerir o conflito» mas promover também entre as partes uma reconciliação capaz de criar pontes para o futuro.

A minha sagração enquanto Bispo ocorreu a 25 de Abril de 2013 farei sete anos de episcopado este ano. Tive e tenho a enorme bênção de estar acompanhado desde então de dois grandes líderes religiosos mundiais profundamente inspiradores em termos humanos e religiosos; o Papa Francisco (Papa desde Março de 2013) e o atual Arcebispo de Cantuária Justin Welby (Arcebispo de Cantuária também desde Março de 2013).

Justin Welby elegeu a Reconciliação como uma das grandes prioridades do seu ministério enquanto Arcebispo. A este propósito referiu : «A Reconciliação é uma das grandes necessidades e desafios enquanto seres humanos. Num mundo marcado pelo conflito, divisão e indiferença, a Igreja tem o papel crucial a desempenhar enquanto comunidade de reconciliadores. Jesus chama cada um de nós a amar a Deus, amar os nossos vizinhos, a nós próprios e aos nossos inimigos, ou seja um mandamento desafiante, em que ninguém fica de fora. O termo «reconciliação» literalmente significa por em conjunto, ou sarar, aquilo que estava partido. Este sarar é muito mais que a ausência de conflito. Também não trata de suprimir a diferença. Reconciliação é acerca de procurar transformar relações que se degradaram ou destruíram em relações de confiança que tragam vida nova. A jornada para tal não é fácil. Requer humildade, tempo e paciência. Acima de tudo, requer a decisão de deixar para trás o destrutivo poder de uma memória e de um passado que magoam. E é precisamente porque a reconciliação é tão difícil que é também tão poderosa. » fim de citação.

Igualmente inspirador é o pensamento do Papa Francisco sobre a Arte da Reconciliação quando afirma: «Devemos sempre renunciar a alguma coisa. Para se alcançar uma reconciliação é preciso renunciar a alguma coisa. Todos o devem fazer. Mas cuidado, renunciar a alguma coisa que não afete a essência da justiça. Talvez se peça, a quem se tem de perdoar, que renuncie ao ressentimento. O ressentimento é rancor. E viver com o rancor é como beber água já usada, como alimentar-se com as próprias fezes; significa que não se quer sair da pocilga. Em contrapartida, a dor, que é também uma chaga, é em campo aberto. O ressentimento é uma casa ocupada, onde vive muita gente amontoada que não tem céu. Ao passo que a dor é como uma casa de campo, onde também há gente amontoada, mas onde se vê o céu. Por outras palavras, a dor está aberta à oração, à ternura, à companhia de um amigo, a mil coisas que nos dignificam. Isto é, a dor é uma situação mais saudável. Assim mo dita a experiência». (fim de citação).

Percebemos aqui que o conflito, qualquer conflito é acima de tudo e principalmente uma vivência pessoal e coletiva carregada de sentimentos e emoções fortes que nos interpelam enquanto pessoas. Ficar na aparente resolução do conflito pode muitas vezes não eliminar as suas causas mais profundas. Importa pois passar da resolução do conflito para a reconciliação entre as partes do conflito que nos leva também muitas vezes a uma reconciliação connosco próprios.

Por último, permitam-me também que refira que o nosso próprio conflito interior e inter-pessoal, extravasou fortemente para um profundo conflito com a criação, o meio ambiente e a natureza que nos rodeiam. Se atrás sublinhamos o princípio de que «só posso ser pessoa através das outras pessoas» poderíamos também referir que verdadeiramente a nossa realização enquanto pessoas pressupõe o íntimo cuidado e colaboração com a Criação da qual fazemos parte e que numa perspetiva de fé «nos foi confiada». Consciente ou inconscientemente criamos um sistema de desenvolvimento que assenta no mito de que tudo é possível e tudo está à nossa disposição. É o mito do crescimento económico sem fim e sempre possível e que não tem em conta o limite dos recursos e reservas existentes. Ao nível mundial percebemos hoje que é já nesta área que se jogam e irão jogar os principais conflitos que estão afetar a família humana e que se prendem com a «questão da água» (ou se quisermos da sua falta), com a perda da biodiversidade, com as migrações forçadas de milhões de pessoas, com os desastres naturais a que assistimos. O que está em causa é o nosso legado às gerações vindouras, sendo que já hoje os mais novos nos dão exemplos de caminhos alternativos a serem seguidos.

Nunca como hoje se tornou tão claro que a resolução dos conflitos que ameaçam a própria humanidade e criação exige a cooperação de todos os homens e mulheres de boa vontade independentemente da sua raça, religião e cultura. Assim o saibamos fazer seguindo o já referido lema de Stº Agostinho «Unidade no certo, liberdade na dúvida e caridade em tudo».

Muito obrigado.
+ Jorge Pina Cabral
Coimbra, 20 de Fevereiro de 2020

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