26º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 26/9/2021

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
26º Domingo Comum – Ano B
26set2021 


Job 42, 1-6; Salmo 27, 7-14; S. Tiago 5, 1-11
 
S. Marcos 9,38-50
38Disse-lhe João: Mestre, vimos um homem que não nos segue expelir demónios em teu nome e lho proibimos, porque não nos seguia. 39Mas Jesus respondeu: Não lho proibais, porque não há ninguém que faça milagre em meu nome e logo depois possa falar mal de mim. 40 Pois quem não é contra nós é por nós. 
41 Aquele que vos der de beber um copo de água, porque sois de Cristo, em verdade vos digo que de modo algum perderá a sua recompensa. 
42Mas quem puser uma pedra de tropeço no caminho de um destes pequeninos que creem, melhor seria que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho e que fosse lançado no mar. 43 Se a tua mão te servir de pedra de tropeço, corta-a; melhor é entrares na vida manco do que, tendo duas mãos, ires para a Geena, para o fogo inextinguível. 44[onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga.] 45Se o teu pé te servir de pedra de tropeço, corta-o; melhor é entrares na vida aleijado, do que, tendo dois pés, seres lançado na Geena. 46[onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga.] 47Se o teu olho te servir de pedra de tropeço, arranca-o; melhor é entrares no reino de Deus com um só de teus olhos, do que, tendo dois, seres lançado na Geena, 48 onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga. 49Pois cada um será salgado com fogo. 50O sal é bom; mas, se o sal se tiver tornado insípido, com que haveis de restaurar-lhe o sabor? Tende sal em vós mesmos e estai em paz uns com os outros.

1. Os discípulos não entendiam que um homem que não pertencesse ao seu ‘grupo’ se atrevesse a fazer o que eles faziam, em nome de Jesus. Por isso, proibiram-no. Não interessava se o que estava a fazer era bom (pelos vistos era, pois, como eles, expelia demónios, ou seja, devolvia a saúde a quem sofria daquela espécie de mal). O critério para a proibição do ato ao homem era a não pertença ao ‘grupo’. Já algo de parecido nos é narrado no A.T. no tempo de Moisés. Este concedeu o Espírito “que repousava sobre ele” a setenta anciãosque rodeavam a Tenda. E passaram a profetizar. Entretanto, dois homens que não tinham ido à Tenda, mas sobre quem o Espírito havia repousado, começaram a também a profetizar. Então, Josué disse a Moisés que os proibisse de fazer aquilo (porque não faziam parte dos setenta que tinham recebido o Espírito). E Moisés respondeu-lhe: “Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, dando-lhe o Senhor o seu Espírito!” (Números 11, 24-29).
Voltando ao Evangelho, como os discípulos se devem ter sentido descorçoados ao ouvir o que ouviram de Jesus: Não lho proibais, porque não há ninguém que faça milagre em meu nome e logo depois possa falar mal de mim. Pois quem não é contra nós é por nós”. É, quando nos damos ao cuidado de perscrutá-lo no silêncio e na atenção humilde, o Evangelho surpreende-nos. De modo diverso do que ouvimos e vemos na corrida do que aceitamos como o normal na nossa vida, Jesus chama-nos para um pulsar outro que nos interpela profundamente: recusemos a mentalidade de “gueto”, não proibamos nem excluamos quem é diferente de nós, não recusemos quem é capaz de fazer como nós (ou melhor do que nós) porque não é do nosso ‘grupo’ (família, igreja, amigos, etc), não sejamos intolerantes nem intransigentes para quem em simplicidade se aproxima de nós e se mostra cooperativo e ajudador de coração aberto. Ora, quem somos nós para ‘dizer’ quem tem ou não o Espírito que, “como o vento, sopra onde quer”, e não se sabe de onde vem nem para onde vai?

2. Mas, Jesus diz-nos ainda algo mais. Fala-nos em “pedras de tropeço”.
“Tropeço” é tudo aquilo que nos desequilibra e faz cair. E, por isso, identificamos como “pedras de tropeço” o que nos é exterior, coisas pequenas que descuidamos, que estão fora do seu sítio, que desvalorizamos mas que nos fazem desequilibrar. Porém, Jesus indica-nos que as “pedras de tropeço” podem estar em nós, no nosso olhar, na nossa mão, no nosso pé. Porquê?
O nosso olhar é o que nos macula. Nele está ou não a bondade do nosso coração. O nosso olhar é que torna os outros aceitáveis ou não (até dizemos “foi amor à primeira vista”), é que nos separa ou une aos outros. É pelo olhar que nos entendemos ou desentendemos, como alguém escreveu: “é o nosso olhar que aprisiona muitas vezes os outros nas suas pertenças mais estreitas e é também o nosso olhar que tem o poder de os libertar”[i]. Nas nossas mãos está a execução das nossas decisões, o abraçar ou o repelir, os gestos de inimizade, de indiferença ou de amizade, de solidariedade, de bondade e compaixão para com os outros. E nos nossos pés está a possibilidade de nos movermos, de irmos ou ficarmos, a capacidade para expormos a nossa determinação numa ação positiva ou negativa. Para Jesus o que conta são as nossas relações com os outros e o que em nós pode ser obstáculo, contraproducente, “pedra de tropeço” no nosso relacionamento com eles. Aí está o que, à luz da perspetiva de Jesus, verdadeiramente nos pode separar de Deus – o verdeiro pecado. E quando, como o salmista, pedimos: “É a tua face, Senhor, que eu procuro, não me escondas a tua face” (Salmo 27, 8-9), tenhamos presente que a verdadeira face de Deus está no acolhimento que devotamos aos outros e, em particular, aos que mais precisam, os pobres, os doentes, os migrantes, os marginalizados que nos procuram. Desse modo podemos viver e testemunhar que o Deus é um Deus de comunhão.  

3. A Fé cristã, como uma realidade importantíssima para a libertação da humanidade em Jesus Cristo, tem de encarar-se como parte da diversidade de ideias, existências, culturas e religiosidades que caracterizam o mundo de hoje. A salvação em Jesus está no mundo e é para o mundo sem exceções; com Jesus, o ‘outro’, o estrangeiro não é uma ameaça, mas uma oportunidade, pois, “quem não é contra nós, é por nós”. Precisamos, portanto, todos (povo, clérigos e bispos) de assumir a necessidade da atenção ativa e compreensiva para com os outros para entendê-los e com eles fazer comunidade vivente que nos proporcione paz e felicidade. Além disso, é necessário ter a consciência de que precisamos do ‘outro’ para nos descobrirmos a nós próprios. O filósofo José Gil diz-nos: “sem os outros eu não teria uma face”. Ou seja, é na relação com o outro, o que é diferente, que o eu se constrói e aperfeiçoa a sua identidade. E isto é uma condição inerente a todo o ser humano. Então, temos de nos esforçar por reconhecer o bem e a beleza que os outros criam, por evitar a nossa tendência para exclusividades bacocas, por extirpar de dentro de nós (o nosso olhar) “caricaturas” do ‘outro’, pois, como dizia Albert Einstein “é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”.
Em Cristo crucificado e ressurreto unem-se Deus e a humanidade. Por isso, “fora do mundo não há salvação”, como dizia o teólogo Schillebeeckx. É por Jesus Cristo que nos é revelada uma nova forma de ouvir, ver e dizer a realidade. Escutemos o Seu ensino e sigamos o Seu exemplo, pois, Ele continua a ser o farol através do qual toda a história humana e toda a vida humana tem um sentido.

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana


[i] Amin Maalouf, in “Identidades Assassinas”, 1998, pág. 31
 

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