14º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 4/7/2021

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
14º Domingo Comum – Ano B
04jul2021 

2 Samuel 7,1-17; Salmo 89,21-38; 2 Coríntios 12,1-10 

S. Marcos 6,1-6 

1Jesus saiu dali, foi para a sua terra e os discípulos foram com ele. 2Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Muitos, ao ouvirem-no, ficaram tão admirados que se perguntavam: «Donde lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? Que milagres são estes que as suas mãos realizam?! 3Não é este o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, José, Judas e Simão? Não vivem também aqui connosco as suas irmãs?» E não queriam nada com ele. 4Então Jesus disse-lhes: «Nenhum profeta é desprezado a não ser na sua terra e entre os seus parentes e familiares.» 5E não pôde fazer ali nenhum milagre, a não ser curar alguns doentes, pondo as mãos sobre eles. 6Ficou admirado com a falta de fé dos da sua terra e foi ensinar pelas aldeias dos arredores.

1. «Donde lhe vem tudo isto?» Ficaram admirados pela sabedoria que ouviram, não compreenderam o que viram e apoucaram as Suas capacidades. Sentimentos naturais dos que viram Jesus a crescer e a fazer-se homem. De notar, o evangelho de Marcos é o único dentre os sinóticos que apresenta Jesus como carpinteiro. Para Mateus e Lucas era o filho do carpinteiro. Mas, isto é parte também do nosso itinerário de vida. Quem nos acompanhou no nosso crescimento e conhece o nosso passado – familiar, vizinho, companheiro de escola, alguém com quem nos cruzámos – elabora ‘imagens’ de nós e, depois, avalia-nos de acordo com elas. Todos passamos por este crivo social e, também, o usamos quando olhamos para os outros. Foi assim nas gerações dos agora mais idosos e continua – um pouco mais mitigado – nas que lhes sucederam, influenciadas pela abertura política do 25 de Abril.
Nesta perícope está patente a confusão natural dos seus conterrâneos entre o homem Jesus, que conheceram e com quem conviveram nas suas circunstâncias humanas e sociais, e o Mestre Jesus que, agora, pleno de humanidade, os queria ensinar a ‘penetrar’ na ambiência do Reino de Deus. Ora, aquela gente não estava preparada para entender este salto no percurso existencial de Jesus e, muito menos, para aceitar o ‘novo’ da Sua doutrina.  
 
2. Por isso, «não queriam nada com ele». Rejeitaram-nO dentro da própria sinagoga. Fecharam as portas da sua afabilidade e consideraram-nO como não pertencente àquela comunidade. Gente com hábitos de vida e maneiras de pensar formatados por uma prática religiosa centrada no cumprimento de regras e leis. Só podiam aceitar alguém como um dos seus – por mais extraordinário que fosse – se obedecesse rigorosamente a esse esquema de vida. Ora, eles deram-se conta que Jesus era diferente, pois, dizemos nós, foi contra esse modo de viver que Jesus se manifestou para expressar todo o amor de Deus que leva os homens à liberdade. Não estavam interessados na transformação que Jesus lhes queria oferecer. Antes, demonstraram toda a sua vontade em continuar o que eram. Por isso, ao rejeitarem Jesus estavam a rejeitar toda a Sua mensagem vivificadora e libertadora. Não queriam mudar, dar-se ao cuidado de pensar a sua fé, de descobrir a grandeza de um Deus próximo e misericordioso.
Ninguém, nem mesmo a Sua família mais íntima O aceitou, o que deve ter sido muito duro para Jesus. Era o preço da Sua missão libertadora. Mas, perante a Sua rejeição, não lhes respondeu nem se amofinou, somente lamentou e foi ensinar a viver ao som do Reino de Deus a outras aldeias. É verdade, a fé em Deus na perspetiva de Jesus não é fácil. Exige confiança, humildade, paciência, e força de vontade para mudar em nós o que for necessário para segui-Lo. Não basta ser religioso.
 
3. «E não pôde fazer ali nenhum milagre». Parece que a nossa humanidade – o que somos no contexto em que vivemos – pode constituir um obstáculo à graça de Deus e à vivência do Seu amor. E, no entanto, o nosso quotidiano é o lugar por excelência onde Deus se quer revelar vivo e atuante. Este é o desafio que aquela gente de Nazaré não quis aceitar, o que impediu que ‘vissem’ a glória de Deus em Jesus e percebessem o ‘novo’ sentido para as suas vidas. Ora, os milagres acontecem se aceitamos Jesus como imagem de Deus, isto é, à medida que nos deixamos tomar por um ‘estilo’ de fé como a que Jesus entendeu e viveu. Ora, quem analisa a realidade da nossa sociedade verifica facilmente que confundimos a miúde religiosidade e fé, pertença a uma Igreja e militância cristã, participação no culto dominical e compromisso batismal de seguir a Cristo. E até fazemos adornos de símbolos cristãos, no esquecimento dos seus profundos significados. Ou seja, não rejeitamos Jesus, como os nazarenos, apenas nos ajeitamos a conviver com Ele na penumbra de uma relação de necessidade sem compromisso. Nesse contexto, dificilmente pode o Senhor ‘fazer’ o que quer que seja que mostre a presença de Deus. Precisa da nossa ‘quota-parte’ no milagre – «a tua fé te salvou».
Talvez pudéssemos mudar se nos afadigássemos a procurar saber o que fazemos da nossa fé em cada dia. Quais os seus frutos? Que “sinal” da realidade invisível em que cremos testemunhamos de modo visível e ‘credível’ às pessoas com quem quotidianamente nos cruzamos? Não podemos esquecer que o que nos é revelado em Jesus é uma “vida humana de acordo com o desígnio de Deus, uma vida rica de sentido e de amor, uma vida habitada pela solicitude para com o outro, uma vida autenticamente humanizante.»[i] Precisamos, portanto, de aceitar a ousadia da fé, com autenticidade e em toda a sua extensão, no que nos alegra e no que nos faça sofrer. Precisamos de assumir a coragem de nos maravilharmos e de nos surpreendermos perante o amor divino. Como alguém disse, “não há milagres para quem recusa abrir-se à grandeza de Deus!”.
 
+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana 


[i] Enzo Bianchi, “Para uma ética partilhada” Pedra Angular, 2009, pág. 45

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