Domingo da Trindade - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 30/5/2021

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COMENTÁRIO BÍBLICO
Domingo da Trindade – Ano B
30maio2021

Isaías 6,1-8; Salmo 29; Romanos 8,12-17

S. João 3,1-17
 
1Havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, que era um dos chefes dos judeus. 2Durante a noite foi ter com Jesus e disse-lhe: «Mestre, sabemos que Deus te enviou para nos ensinares. Ninguém pode realizar os sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.» 3Jesus respondeu-lhe: «Fica sabendo que ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.» 4Nicodemos perguntou-lhe então: «Como é que um homem idoso pode voltar a nascer? Pode entrar no ventre de sua mãe e nascer outra vez?» 5Jesus respondeu: «Fica sabendo que só quem nascer da água e do Espírito é que pode entrar no reino de Deus. 6O que nasce de pais humanos é apenas humano, o que nasce do espírito é espiritual. 7Não te admires por eu te dizer: é preciso nascer de novo. 8O vento sopra onde quer; ouves o seu ruído, mas não sabes donde vem nem para onde vai. Assim acontece também com aquele que nasce do Espírito.»
9Nicodemos insistiu: «Como é que isso pode ser?» 10Jesus respondeu: «Tu és um dos mestres do povo de Israel e não sabes estas coisas? 11Repara bem no que te vou dizer: quando falamos é porque sabemos e quando afirmamos alguma coisa é porque vimos, mas não querem aceitar o que eu vos digo. 12Se não acreditam em mim quando vos falo das coisas deste mundo, como podem crer quando vos falar das do Céu? 13Ninguém subiu ao céu a não ser o Filho do Homem que veio do Céu. 14Assim como Moisés levantou a serpente de bronze no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja levantado 15para que todo aquele que nele crer tenha a vida eterna.
16Deus amou de tal modo o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crer não se perca, mas tenha a vida eterna. 17Não foi para condenar o mundo que Deus lhe enviou o seu Filho, mas sim para que o mundo fosse salvo por ele.
 
 
1. Na primeira parte do Evangelho de hoje aparece por 8 vezes a referência ao verbo “nascer”. Não há dúvida, é a palavra-chave do texto.
Neste tempo de pandemia tem-se enfatizado a palavra “reinventar” especialmente aplicada às empresas, ao espírito empreendedor. Assim se quer significar a mudança na feitura de um produto, manipulando os seus elementos constituintes à medida das tendências pressentidas nos mercados e usando com mestria a panóplia de processos de comunicação (marketing) para o vender. Mas, uma coisa é reinventar-se a produção ou os serviços de uma empresa e outra, bem diferente, é a palavra de Jesus: «É preciso nascer de novo», (noutras versões “nascer do alto”). “Nascer de novo” é uma questão pessoal, o ser uma pessoa diferente, o que, antes de mais, exige a reflexão sobre nós próprios, o ‘olhar’ para a nossa consciência, os nossos valores, e avaliar as nossas ações à luz do que o Evangelho aponta como caminho na peugada de Jesus.
Mas, analisemos o diálogo de Jesus com Nicodemos.
O Evangelho de João, além desta conversa, refere por mais duas vezes o nome de Nicodemos (7, 50 e 19, 39) o que nos permite dizer que era um homem justo e honrado. Se assim é, porque será que Jesus lhe disse que tinha de mudar como se viesse de novo a este mundo? Ainda, Jesus não lhe pede que deixe de pertencer ao partido dos fariseus, ou que mude isto ou aquilo na sua vida. Apenas lhe pediu que nascesse «do Espírito», que fosse um homem “de espírito”. A palavra grega pneuma tanto significa “espírito” como “vento”, como se pode ver em Atos 2, 1-4, na descida do Espírito Santo sobre os discípulos. Então, pode concluir-se que Jesus pediu a Nicodemos que fosse como o vento,que não se sabe «donde vem nem para onde vai», isto é, que fosse livre, como o vento, “não atado a nada nem a ninguém”. Não uma liberdade para fazer o que se entende, mas, a liberdade do Espírito, ao serviço da misericórdia divina, como Jesus, num andamento e olhar humanos que pessoalizam a presença de Deus na nossa vida.

2. Ao fazer zapping pelos canais televisivos, da cena final dum filme de que não fixei o título, retive a última frase do protagonista: “não há atalho para a felicidade”.
‘Atalho’ é um caminho secundário, diferente e mais curto do que o caminho principal, que permite chegar mais rapidamente (do Dicionário). Nos computadores podem definir-se ícones (chamados atalhos) que permitem o acesso rápido a ficheiros, pastas ou programas. E, neste corrupio de vida em que tudo é efémero e se exige rapidamente, as pessoas emitam os tiques informáticos aplicando-os ao seu quotidiano. Procuram deste modo encontrar possibilidades existenciais que mais rapidamente satisfaçam o que mais almejam: a felicidade. Muitos procuram-na agindo pela ambição do muito dinheiro para se vangloriarem na sua riqueza. Outros procuram-na no êxito pessoal pela ambição de serem conhecidos e tudo o que seja a fama exterior. Na verdade, ser ambicioso não é um mal em si mesmo. Todos precisamos de alguma ambição para conseguirmos fazer algo da nossa existência, particularmente na primeira metade da vida. Depois, requer-se uma outra atitude – diz-nos C. G. Jung, um terapeuta suíço – a de aprender a ser, a entrar dentro de nós, a descobrir a riqueza da alma (Anselm Grün, “Diz lá, Tio Willi”, Paulinas 2017, pág. 58). E a realidade alerta-nos para que não o façamos por atalhos, mas através do caminho principal que Jesus nos apresenta: a porta estreita (S. Mateus 7, 13-14), ser misericordioso, pacificador, humilde de espírito e limpo de coração (S. Mateus 5, 3-12). Ora, não lhes parece que é isto mesmo que Jesus ‘diz’ a Nicodemos e a nós quando refere que precisamos de nascer do Espírito?

3. A expressão «Eis-me aqui, envia-me a mim» (Isaías 6, 8) ‘anda’ comigo desde a minha juventude. Até a escolhi para lema do meu episcopado. As notas bíblicas chamam àquela perícope “a vocação de Isaías”. Realmente, só um(a) vocacionado(a) experiencia o itinerário ali apresentado: primeiro, o assombro pela excelência de Deus e a tomada de consciência da sua pequenez e incapacidade; a seguir, o deixar-se tocar pela brasa purificadora que permite ouvir a chamada; e, finalmente, a resposta, a decisão. O assombro, aquele misto de temor, curiosidade e pureza confiante da criança frente a algo verdadeiramente novo. O que nos abre o olhar, rasga o horizonte e nos enche de luz. O que verdadeiramente distingue o ‘executante’ religioso do ‘adorador’ apaixonado. Ao ser perguntada porque vinha à igreja tão raramente, a jovem respondeu: “vou quando o culto é celebrado por quem está a ‘sentir’ o que diz. Não sei explicar, é o que sinto”. Depois, a brasa que certamente queimou os lábios do Profeta, como Pedro se apercebeu de que o mar é traiçoeiro e nós como a vida é inexorável, a brasa que também purifica o intento. E assim, só assim, se pode ouvir a pergunta e responder ingenuamente, sem saber explicar, mas com confiança nEle: «Eis-me aqui, envia-me a mim».  

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana

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