1º Domingo depois da Páscoa - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 24/4/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
1º Domingo depois da Páscoa – Ano C
24abr2022

Atos 5, 27-32; Salmo 2; Apocalipse 1, 9-19

S. João 20, 19-31
19Na tarde desse mesmo dia, o primeiro da semana, os discípulos encontravam-se juntos e tinham as portas fechadas com medo das autoridades judaicas. Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco!» 20Depois mostrou-lhes as mãos e o peito. Eles alegraram-se muito por verem o Senhor. 21Jesus disse-lhes outra vez: «A paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio.» 22Em seguida, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebam o Espírito Santo. 23Àqueles a quem perdoarem os pecados, são perdoados; e àqueles a quem não os perdoarem, não lhes são perdoados.»
24Ora Tomé, um dos Doze, a quem chamavam Gémeo, não estava com eles quando Jesus lhes apareceu. 25Os outros discípulos contaram-lhe: «Vimos o Senhor!» Mas Tomé respondeu-lhes: «Se eu não vir a ferida dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo no lugar dos pregos e a minha mão na ferida do peito, não acredito.»
26Uma semana mais tarde, os discípulos estavam de novo reunidos em casa, e Tomé encontrava-se com eles. Apesar de as portas estarem fechadas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e exclamou: «A paz esteja convosco!» 27A seguir disse a Tomé: «Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos, estende a tua mão e mete-a no meu peito. Não sejas descrente! Acredita!» 28E Tomé respondeu: «Meu Senhor e meu Deus!» 29Jesus disse-lhe: «Crês agora porque me viste? Felizes os que creram sem terem visto.»
30Jesus fez ainda diante dos seus discípulos muitos outros sinais que não vêm neste livro. 31Estes foram aqui contados para que creiam que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida no seu nome.

1. Os discípulos não viram a Ressurreição, pois, o túmulo estava vazio e, para acreditarem em Jesus ressuscitado, precisaram de vê-Lo, ouvi-Lo e tocar-Lhe. Um “corpo” que aparecia e desaparecia, que passava por portas fechadas (a significação simbólica do “corpo imaterial” de Jesus ressuscitado). O tempo e o modo necessários para perceber que o Senhor era e já não era o mesmo. Ou seja, a Ressurreição de Jesus fez-se “viva” para os discípulos através de expressões materiais. Como antes, o Senhor tinha deixado a Sua memória através da última ceia: “o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e tendo dado graças, partiu-o e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim” (I Coríntios 11, 23-25). Ainda, ao resumir o Seu ensino, Jesus clarifica: “Quem me vê a mim vê aquele que me enviou” (S. João 12, 45). Na verdade, Deus sabe que precisamos da materialidade das coisas, do que vemos, pensamos, apalpamos e manipulamos, para alcançarmos o imaterial. Podemos dizer, como Nicolau de Cusa (1401-1464): “Não vejo a Luz, só vejo as coisas iluminadas”. Então, porque caímos na tentação de idealizar a Ressurreição, quando o corpo ressurreto do Senhor se manifestou no concreto do encontro com os discípulos e na paz que lhes trouxe, isto é, na satisfação da maior das suas necessidades naquele momento?

2. As dúvidas de S. Tomé são também as dos dois discípulos a caminho de Emaús. Só acreditaram na Ressurreição de Jesus depois de O “verem”. O primeiro rendeu-se com uma das saudações mais significativas do Evangelho: “Senhor meu e Deus meu!”; os segundos, “quando estavam à mesa, (e Jesus) tomando o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu” (S. Lucas 24, 30-31). Tanto num como no outro caso os atos e sua materialidade transformaram-se na perceção do divino. 
Também nós temos dúvidas. Mas tal, em vez de nos separar da fé, deve ser entendido como uma circunstância natural do seu caminho. Bem-haja a fé que se interroga e procura, a fé que se mistura com o intrincado da vida quotidiana, que parece desaparecer nas curvas da estrada e se reencontra mais adiante em caminho aberto. Não há-de ser a dificuldade da ‘prova’ que nos vai fazer deixar de acreditar, pois, sem isso não podemos crescer como pessoas. Que beleza a da expressão (oração?) daquele pai do jovem endemoninhado (como se dizia na altura), humilde, pedindo a cura de seu filho: “Eu creio! Ajuda a minha incredulidade!” (S. Marcos 9, 24). E Jesus cura o doente. Isto é, Jesus acredita no sofrimento daquele pai antes de este acreditar em Si. É assim a compreensão e a misericórdia de Deus para connosco, mesmo quando não acreditamos.      

3. No Evangelho de S. João dois foram os momentos em que Jesus entregou o espírito: na cruz, ao morrer (“disse: «Está consumado!» E, inclinando a cabeça, entregou o espírito”– S. João 19, 30); e, ressuscitado, ao aparecer aos discípulos escondidos dos judeus (“… soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo»” – S. João 20, 22). Ou seja, Jesus deu o “seu espírito” ao fracassar no sofrimento e ao triunfar do sofrimento.[i] Significa, então, que viver o “espírito de Jesus” é o modo de estar em que pela fé aprendemos a sofrer e fracassar, aceitando, confiando, esperando “contra toda a esperança” (Romanos 4, 18), e também, a saber sair com dignidade e humanidade de qualquer sofrimento ou fracasso. Como muito bem explica Jorge Teixeira da Cunha (Teólogo e Cónego Católico Romano), “Jesus venceu o mal porque manteve humanamente a comunhão, criadora e salvadora, com Deus, superando a angústia, a desconfiança, o orgulho humano. Essa experiência, que é a ressurreição, é a definição da vida humana conseguida que está ao nosso dispor no ato de fé e nas formas de vida honesta que muitos seres humanos cultivam para lá da pertença à comunidade cristã visível” (Voz Portucalense, 06abril2022).
Somos, assim, interpelados a exercitar o “espírito de Jesus” no nosso quotidiano, à luz da ressurreição, para que “Crendo, tenhamos vida no seu nome”.  

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana


[i]José Mª Castillo, “La Religión de Jesús, Ciclo C (2015-2016), pág. 209
 

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