1º Domingo da Quaresma - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 6/3/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
1º Domingo da Quaresma – Ano C
6mar2022

Deuteronómio 26,1-11; Salmo 91,9-16; Romanos 10,8-13

S. Lucas 4,1-13
1Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do rio Jordão. O Espírito conduziu-o para o deserto, 2onde esteve durante quarenta dias e foi tentado pelo Diabo. Nesses dias, não comeu nada e quando chegou ao fim teve fome. 3O Diabo disse-lhe então: «Se tu és o Filho de Deus, diz a esta pedra que se transforme em pão.» 4Mas Jesus respondeu: «A Sagrada Escritura diz: Não se vive só de pão.» 5Então o Diabo levou-o para mais alto e mostrou-lhe num momento todos os países do mundo. 6Depois disse-lhe: «Posso dar-te todo este poder e a sua glória, porque tudo isto me foi entregue a mim e eu dou-o a quem eu quiser. 7Tudo será teu, se me adorares.» 8Mas Jesus respondeu-lhe: «A Escritura diz: Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele prestarás culto.» 9Depois o Diabo conduziu Jesus a Jerusalém, levou-o ao ponto mais alto do templo e disse-lhe: «Se és o Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, 10porque lá diz a Escritura: Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito para te ampararem: 11eles hão-de levar-te nas mãos para evitar que magoes os pés contra as pedras12Jesus respondeu: «Mas a Escritura também diz: Não tentarás o Senhor teu Deus.» 13Após ter tentado Jesus de todas as maneiras, o Diabo afastou-se dele até um tempo determinado.

1. Neste episódio da Tentação de Jesus no deserto, o evangelho de S. Lucas junta os elementos das narrativas de S. Mateus 4, 1-11 (três tentações depois de um jejum de 40 dias) e de S. Marcos 1, 12-13 (quarenta dias de tentação). E altera a ordem das tentações para terminar em Jerusalém. Na leitura do “seu” evangelho, percebe-se que S. Lucas considera Jerusalém o centro predestinado da obra da salvação (ver S. Lucas 2, 38). O que interessa aqui – para além da dúvida sobre se o que aqui se conta sucedeu tal qual é narrado – é perceber que o mal (representado pela figura do Diabo) torna o homem um ser cativo. Umas vezes usando a necessidade primária (o pão para matar a fome); outras, a apetência humana pelo “ter”; outras, ainda, a vontade de reconhecimento social conquistado com factos extraordinários. O ‘diabo’ sabe bem como usar estas vicissitudes e fraquezas das pessoas para as cativar e dominar. Ora, o que esta narrativa nos diz é que o verdadeiro caminho da libertação do domínio maléfico está, não na confiança em nós próprios e na facilidade, mas na obediência a Deus e na abnegação. E isto é algo que está cada dia mais em jogo nas nossas vidas. Hoje, sob o jugo do capitalismo neoliberal, somos dominados por um poder que nos manieta numa complexidade de vida de tal forma que somos induzidos a reproduzir a trama da dominação interpretando-a como liberdade. “É, em definitivo, a convergência entre liberdade e exploração na forma de autoexploração” (Byung-Chul Han). Olhemos, como exemplo, para o nosso telemóvel que, embora o vejamos como um instrumento para nosso uso, em vez de nos apropriarmos dele, é ele que se apropria de nós e nos faz seus escravos.

2. Três vezes tentado, três vezes Jesus refutou as investidas do diabo com palavras da Escritura (“A Escritura diz…”). Isto deve querer dizer-nos alguma coisa. A leitura da Bíblia “não se traduz de forma direta em fé e prática religiosa”, diz-nos o Prof Barton da Universidade de Oxford.[i]Na verdade, de quando em vez deparamo-nos com pessoas que demonstram apreciável conhecimento da Bíblia recitando de cor trechos da mesma e, no entanto, sem que tenham uma relação estreita com a fé nem com a prática religiosa. Pois, mas esse conhecimento pode constituir uma verdadeira ajuda para enfrentarmos algumas das exigências a que a vida nos chama. Assim como Jesus que utilizou uma passagem bíblica como resposta para cada situação em que foi interpelado. Até na Sua agonia na cruz “Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?” (S. Mateus 27, 46 – Salmo 22, 2). Ainda hoje me dou conta quanto me foi útil aquela prática da minha meninice de dizer um versículo bíblico de cor – texto áureo – na aula da Escola Dominical, cada domingo, antes do culto. Versículos que me ficaram gravados e me têm acompanhado na vida como: “O Senhor é o meu Pastor, nada me falta” (Salmo 23, 1); “Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações” (Salmo 46, 1); “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (S. Mateus 4, 4); “Pai-nosso” (S. Mateus 7, 14); “ É na vossa perseverança que ganhareis a vossa alma” (S. Lucas 21, 13); etc. É que, como diz S. Paulo, “Tudo o que se escreveu no passado é para n osso conhecimento que foi escrito, a fim de que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos esperança” (Rom.15, 4).

3. Entramos na Quaresma, o tempo em que somos chamados a um estado de espírito de introspeção, de análise do nosso estilo de vida com vista a uma conversão que nos aproxime de Deus. “Para a religião é essencial a calma contemplativa.”[ii] Estamos, portanto, no início dum percurso penitencial que nos vai conduzir à celebração da Páscoa do Senhor. Embora a cor litúrgica seja o roxo – símbolo da penitência com ênfase no pecado – o foco da nossa caminhada há-de ser o “cantar a alegria do perdão” (Irmão Roger, Comunidade de Taizé). Mais do que tomados pela tristeza do nosso pecado, caminhemos com a certeza alegre do perdão divino.
Todavia, conforme o Evangelho de hoje, o Espírito por vezes envia-nos ao deserto, lugar de reflexão por excelência e também lugar de privação e de provação, onde só se pode levar o essencial. O Espírito Santo, como a Jesus, por vezes coloca desafios aos que assumem o seu batismo que são autênticos lugares de deserto (dúvidas na fé), de tentação (desejos e emoções que nos afastam de Deus e dos nossos irmãos), de provação (situações de dificuldades não esperadas). Nessas alturas só podemos invocar a misericórdia de Deus, apresentando-nos somente com o essencial de nós mesmos, e ‘usar’ a Sua Palavra como farol que ilumina o deserto e nos permite ver o caminho mais adequado para uma adesão ao bem que liberta em detrimento do mal que escraviza. Ora, isto é Quaresma qualquer que seja o mês do ano.
Pensemos no Povo Ucraniano que de um momento para o outro, de vida equilibrada, se vê ‘introduzido’ num deserto de incerteza, de provação, sofrimento e morte. O diabo no seu esplendor, separando famílias, matando civis, desinquietando crianças na sua incompreensão da guerra, esventrando uma nação só para dominá-la. A quantos irá esse mal dizer, daqui a tempos, “se me adorares”, dar-te-ei isto e aquilo… Ajudemos essa gente e oremos pelos que sofrem, pelos que morrem e seus familiares, pelos que resistem e mantêm vivo o sentido para a sua vida. E oremos também pelos seus algozes e invasores para que o Senhor transforme os seus corações e mentes e acabem com a guerra para que se inicie uma nova era de diálogo e concertação verdadeira e eficaz.   

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana


[i] John Barton, “Uma história da Bíblia”, Temas e Debates – Círculo de Leitores, Lisboa, 2019, pág. 21
[ii] Byung-Chul Han, “Do Desaparecimento dos Rituais”, Relógio D’Água, Lisboa, 2020, pág. 47

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