8º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 27/2/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
8º Domingo Comum – Ano C
27fev2022

Isaías 55,10-13; Salmo 92,2-6,12-15; 1 Coríntios 15,51-58
 
S. Lucas 6,39-49
39Jesus apresentou-lhes depois esta parábola: «Pode um cego guiar outro cego? Não irão cair os dois nalgum buraco? 40Nenhum discípulo está acima do seu mestre, mas todo o discípulo bem ensinado será como o mestre. 41Por que é que tu reparas no cisco que está na vista do teu semelhante e não vês a trave que está nos teus próprios olhos? 42Como podes tu dizer ao teu semelhante: “Anda cá, deixa-me tirar-te isso”, se não consegues ver aquilo que tens nos teus olhos? Fingido! Tira primeiro a trave que está nos teus olhos e depois já vês melhor para tirares o cisco da vista do teu semelhante.»
43«Não há nenhuma árvore boa que dê frutos ruins nem árvore ruim que dê frutos bons. 44Qualquer árvore se reconhece pelos seus frutos. Não se colhem figos dos espinheiros nem uvas das silvas. 45Quem é bom diz coisas boas, porque tem um tesouro de bondade no seu coração, mas quem é mau diz coisas más, porque o seu coração está cheio de maldade. Cada qual fala daquilo que transborda do seu coração.»
46«Por que é que estão sempre a chamar-me: “Senhor! Senhor!” e não fazem o que eu digo? 47Sabem com quem eu comparo todo aquele que vem ter comigo para ouvir as minhas palavras e as põe em prática? 48Como o homem que construiu uma casa escavando bem fundo para assentar os alicerces na rocha. Veio uma cheia, a água bateu com força contra a casa, mas não a abalou porque estava assente na rocha. 49Mas todo aquele que ouve o que eu digo e não o pratica pode comparar-se ao homem que construiu uma casa sobre a terra, sem alicerces. Quando a corrente embateu contra ela, caiu logo e ficou completamente destruída.»

1. “Por que é que tu reparas no cisco que está na vista do teu semelhante e não vês a trave que está nos teus próprios olhos?”. Eis um dos mais intrincados problemas das relações humanas. Como somos tão rápidos e assertivos no apontar dos erros dos outros – mesmo menores – e tão complacentes com os nossos, quando deles temos consciência! Na verdade, uma das características do ser humano é a tendência para se sentir – ver – superior aos outros, ter ou ser ‘mais’ qualquer coisa do que os outros. Colocamo-nos no centro, explodimos em saber, em força, ou outra qualquer capacidade, e apresentamo-nos como os melhores, esquecendo que ao assim proceder estamos a considerar os outros nossos inferiores. Ora, isto não é senão uma manifestação de incapacidade de reconhecer os nossos limites e fraquezas. Então, Jesus ao dizer-nos que “não vemos a trave que está nos nossos próprios olhos” aconselha-nos a olhar com realismo para a nossa própria vida, o que somos, para depois nos aprontarmos a ajudar os outros.

2.“Cada qual fala daquilo que transborda do seu coração”.O coração é um músculo crucial para a vida, pois bombeia o sangue através dos vasos sanguíneos do sistema circulatório. Mas, para lá dessa função, o coração é também o cadinho das nossas emoções e sentimentos e, segundo Jesus, depende dum tesouro de bondade ou maldade onde assentam as nossas vontades, as nossas escolhas e decisões.  
Um dia Jesus disse que “o coração está onde estiver o nosso tesouro”(S. Mateus 6, 21). Ou seja, a grandeza ou aviltez do nosso tesouro é a argamassa do que se ‘congemina’ no nosso coração, sejam ‘bondades’ infinitas ou ‘malandrices’ inauditas. O que nos permite compreender a confissão do Apóstolo Paulo “não faço o bem que queria, mas o mal que não quero, esse faço” (Romanos 7, 19). E, também, o evangelista S. João nos avisa que “Deus é maior do que o nosso coração” (I João 3, 20). Ou seja, nem tudo o que ‘vem’ do coração pode ser a verdade, o que nos deve fazer ter a humildade – estar alerta – para perscrutar, ter cuidado com o que falamos. Vivemos num tempo em que o que vale é o nosso sentimento, as nossas emoções, em detrimento do que possamos pensar, criticar, avaliar. Isto, por vezes, leva-nos a pensar que o que interessa no andamento da vida é o que sentimos a propósito do que vemos, ouvimos e lemos. Precisamos de estar cientes de que o nosso coração nos pode enganar e levar-nos a decisões de que mais tarde podemos sofrer consequências. Como aquele publicano no Templo, temos de assumir as nossas fragilidades e com sinceridade pedir: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador” (S. Lucas 18, 13).
 
3. «Por que é que estão sempre a chamar-me: “Senhor! Senhor!” e não fazem o que eu digo? Que pergunta, esta!É humano clamar pela ajuda de Jesus quando se está em sofrimento, em ansiedade ou desespero. Ele próprio disse “pedi e dar-se-vos-á”, um convite à chamada por “Senhor”… como o fez aquele cego de Jericó “Filho de David, tem misericórdia de mim!”, e até o ladrão na cruz “Jesus, lembra-te de mim quando vieres no teu reino” (S. Lucas 23, 42). Ao fazê-lo estamos a reconhecer a Sua soberania na nossa vida e a experienciar o sentido religioso.
Contudo, a fé em Jesus, como Senhor e Salvador, implica também a nossa envolvência no Seu seguimento. E este só se pode realizar através do Evangelho. Lendo as palavras e as ações de Jesus, meditando nas Suas chamadas de atenção, procurando a linha de rumo para a nossa vida na relação com Deus, sem hipocrisias, de coração aberto, humildemente e com coragem para enfrentar as dificuldades que tal caminhar sempre levanta. Numa palavra, “fazer o que Ele diz”.   
Já reparastes como abundam por aí as pessoas religiosas, sempre prontas a cumprir as regras e os preceitos que a religião impõe, mas muito poucas as que se preocupam por cumprir o Evangelho na sua conduta?
Ora, o Evangelho de hoje está cheio de referências às discrepâncias do nosso quotidiano. O querer ser superior aos outros, julgando-se mais perfeito do eles; a vontade de nos embelezarmos exteriormente, esquecendo que o que conta são os frutos que produzimos, como os da boa árvore que não precisam de ‘maquilhagem’ para ser bonitos; a hipocrisia, a arte de representar o que não se é, lembrando que só cultivando o bom tesouro no coração se pode deixar de viver de aparências; a propensão para o mero cumprimento dos preceitos religiosos, esquecendo o valor transformador do Evangelho. Tenhamos presente que Deus ama-nos como somos, mas espera que façamos alguma coisa para sermos melhores.

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana

 

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