7º Domingo Comum - Comentários bíblicos - Bispo D. Fernando Soares - 20/2/2022

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COMENTÁRIO BÍBLICO 
7º Domingo Comum – Ano C
20fev2022

Génesis 45,3-11.15;  Salmo 37,1-11;  1 Coríntios 15,35-38.42-50

S. Lucas 6,27-38
27«Digo a todos os que me estão a ouvir: amem os vossos inimigos e façam bem a quem vos odeia. 28Abençoem quem vos amaldiçoa e orem por aqueles que vos tratam mal. 29Ao que te bater num lado da cara, deixa-o bater também no outro. Ao que te tirar o manto, não o impeças de levar a túnica. 30Dá a quem te pedir, e se alguém levar o que é teu, não tornes a pedi-lo.
31Façam aos outros como desejam que os outros vos façam.
32Se amarem apenas aqueles que vos amam, que recompensa poderão esperar de Deus? Até os pecadores têm amor àqueles que os amam. 33Se fizerem bem somente aos que vos fazem bem, que recompensa poderão esperar? Até os pecadores procedem assim. 34Se emprestarem apenas àqueles de quem esperam tornar a receber, que recompensa poderão esperar? Até os pecadores emprestam uns aos outros para tornarem a receber. 35Vocês, pelo contrário, tenham amor aos vossos inimigos, façam-lhes bem, e emprestem sem nada esperar em troca. Assim, receberão grande recompensa e serão filhos do Deus altíssimo, porque ele é bom até para as pessoas ingratas e más. 36Sejam misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso.»
37«Não julguem e não serão julgados. Não condenem e não serão condenados. Perdoem e serão perdoados. 38Deem e ser-vos-á dado. Uma boa medida, calcada, batida e transbordante vos será colocada no regaço. Pois a medida que usarem para os outros será usada também para convosco.»


1. Continua o discurso da planície do domingo passado, mas, hoje, com uma interpelação bem mais radical. No Evangelho anterior, os “ais” de Jesus lamuriavam os ricos, os fartos e os que se riem da desgraça alheia, enquanto hoje, Jesus chama-nos à ‘capa’ indicando modos de estar em relação com os outros, não quaisquer outros, os nossos inimigos.
Li numa crónica da psicóloga clínicaMargarida Cordo sobre o envelhecimento (7 Margens, de 16/2) que as pessoas com 70 e mais anos agora criaram “um novo paradigma para a palavra mudança”, pois, já “viveram sete décadas e passaram por dois séculos e dois milénios; conheceram o telegrama e chegaram à internet; ouviram histórias da gripe espanhola, da boca de tios e avós, e tropeçaram na Covid 19; passaram por muito mais meios de comunicação e de transporte e testemunharam muito mais dimensões da vida do que qualquer outra geração; vieram do analógico ao digital”. E conclui: “Na atualidade, têm a maior sabedoria que serve todos, tenham que idade tiverem – viver um dia de cada vez”. Ora, todas aquelas mudanças vieram do exterior, impostas pelos avanços científicos e tecnológicos a que tais pessoas tiveram de se adaptar. Os seus comportamentos alteraram-se à medida das exigências da vida quotidiana. Mas, será que as suas índoles, os seus modos de ser e de estar, a sua relação com os outros se modificou nalguma coisa?

2. Três expressões dominam o texto: fazer bem, emprestar sem nada esperar em troca, ser misericordioso(a) para com os nossos inimigos. Ou seja, uma mudança (podemos chamar-lhe um novo nascimento) que decorre de uma transformação interior. É essa a mudança a que Jesus nos chama, aquela que altera o nosso olhar sobre a realidade e os outros e que nos faz perceber sentimentos muito difíceis de aceitar, alguns dirão impossíveis de realizar. Tenhamos presente o que tantas vezes ouvimos: o provérbio “quem não se sente, não é filho de boa gente”, a lei de talião “olho por olho, dente por dente” (S. Mateus 5, 38); e também as imprecações sobre os inimigos que lemos em tantos Salmos. Há, então, contextos – a nossa própria relação com a vida e com a vida dos outros – que nos formatam comportamentos, os quais nem sempre se enquadram na perspetiva de Jesus.
Importa, portanto, que cada um(a) de nós seja capaz de um exercício quotidiano de monitorização do “seu” estado interior. Como procedi nesta ou naquela circunstância? Será que sou capaz de transformar problemas em desafios? Será que tenho consciência das minhas transformações corporais e mentais? Se sim, como as encaro? Percebo as minhas falhas, os meus tropeços? Será que rio deles? É da minha natureza fazer bem aos outros? Como? Espero ou não receber o que emprestei? (Recordo uma frase que li numa biblioteca particular: “os livros não gostam de ser emprestados; quando o são, ficam de tal modo aborrecidos que nunca mais voltam”). E, como exerço a condição de ‘misericordioso’ perante aqueles que me ofenderam?
 
3. Mas, Jesus vai mais longe apresentando o que se chama a Regra de Ouro: “Façam aos outros como desejam que os outros vos façam”, a que S. Mateus acrescenta “porque essa é a Lei e os Profetas” (S. Mateus 7, 12). Isto é, o fundamento relacional do Povo de Israel (Levítico 19, 18) é indicado por Jesus como processo de vida na perspetiva do Reino de Deus. Um modo simples de compreender o que Deus quer dos que nEle acreditam e confiam, uma forma de vida, um modo de nos relacionarmos com os outros. Ou seja, o Evangelho é fundamentalmente uma “ética”, uma conduta em que o essencial é tratar os outros como eu quero que eles me tratem a mim. Dito de outra forma, a medida da minha bondade, respeito, carinho, estima para com os outros deve ser a que eu quero para mim. Só assim nos capacitamos para “amar os nossos inimigos e fazer bem a quem nos odeia”.
O desafio que Jesus nos lança é o de prestarmos atenção àqueles e àquelas que nos rodeiam, perceber os seus interesses e, assim, descobrir oportunidades para dizer ou fazer algo bom por eles. Em cada situação de conflito imaginar-nos no lugar da outra pessoa, tentando entender os seus sentimentos. Como diz a frase “Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter... calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri”. Ser flexível na apreciação das circunstâncias, relativizando as nossas certezas e tendo presente que todos somos diferentes, o que significa que o que é conveniente para mim pode não sê-lo para os outros. E – muito importante – precisamos de orar para que Deus incuta no nosso coração o sentido da misericórdia e da compaixão a fim de levarmos aos outros (amigos e inimigos) esses sinais da presença divina na nossa vida. Sim, porque só em Deus e por Deus podemos realizar aquilo a que hoje Jesus nos chama, mesmo que pensemos ser impossível realizar.

+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana

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