Mas, como podemos apropriar essa realidade? Analisemos atentamente o Evangelho proclamado.
 
2. As mulheres iam preocupadas, perguntando-se “quem nos poderá rodar a pedra que está à entrada do túmulo?”. Levavam “perfumes para pôr no corpo de Jesus” (vº 1). Isto é, procuraram Jesus morto para perfumar-Lhe o corpo,  honrar o defunto, como era uso.  Atitude humana, compassiva, que indica a sua proximidade familiar e fraternal com o Mestre, no contexto da realidade cultural, religiosa e psicológica daquele tempo. Por isso, aquelas santas mulheres (como os apóstolos, mais tarde) foram confrontadas com o nada, no sentido real do termo. Ouviram a voz de um anjo que lhes diz “ele ressuscitou. Já não está aqui”, o que as amedrontou (“saíram do túmulo a correr, pois estavam a temer de espanto” – V.8). O que nesta nova realidade se lhes apresenta é a desconstrução de tudo o que momentos antes era sua convicção sobre o morto Jesus. São confrontadas com uma nova realidade, a da fé, e tremem de espanto, de confusão e de medo. Ora, isto indica que, embora tivessem acompanhado Jesus, ouvindo as Suas palavras e vendo os Seus atos, não entenderam nada sobre a finalidade da Sua missão e da Sua mensagem. Ali, perante o sepulcro, na ambiência da morte, a realidade existencial humana sobrepunha-se à realidade da fé e a compreensão e os sentidos rendiam-se perplexos a uma outra e nova dimensão da existência.  
3. Então, o evangelho da ressurreição do Senhor leva-nos a perceber que a realidade da fé nos introduz numa instância de compreensão e de experiência das coisas que vai para além do que intuímos e entendemos no nosso viver do dia-a-dia. A crença na ressurreição amplia-nos a visão ajudando-nos a viver. Como explica o evangelista João quando diz que o seu evangelho é “para que acreditem que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que acreditando, tenham vida nele” (S. João 20, 31).
Esta é a novidade do evangelho para todos e tantos que hoje se encontram em situação de grande dificuldade, ansiedade e medo. Aquelas e aqueles que estão a sentir a necessidade a entrar-lhes pelas portas adentro com o desemprego próprio ou de familiares e o espetro da pobreza e do desespero a pairar sobre as suas famílias. Pessoas que ainda ontem se mantinham incólumes aos “azares” da vida e que hoje vêem desfazer-se sonhos, expetativas, modos de vida. Estão a deixar de viver para passar a sobreviver, empobrecendo, e assim as suas vidas apresentam-se-lhes como uma espécie de mal necessário. A palavra do Evangelho é mesmo para esses, pois, se Jesus venceu a morte e, assim, ganhou um novo sentido para a vida, então, “ter vida em Jesus” significa ir mais longe do que o nosso viver nos pode proporcionar, não em bem estar ou capacidade de aquisição de bens, mas em consciência de uma outra realidade de conforto interior que, embora nos transcenda, foi criada para nós e nosso desfrutar.
Neste sentido, a Vigília Pascal é, assim, como a luz ao fundo dum túnel, cuja travessia se inicia na quarta-feira de cinzas, com jejum, análise interior e oração – a austeridade da fé – preparando-nos para o tempo da libertação, inundados da luz da alegria e da confiança que a ressurreição de Jesus nos propicia. Isto é, depois de um tempo de trevas surge a alegria do encontro com a luz e a voz solta-se-nos entoando o Glória e a Aleluia, caraterística litúrgica do Tempo Pascal.
 
3. Mas, continuando na leitura do evangelho, verificamos que a Ressurreição não foi um “click” para os discípulos. Precisaram de tempo e reflexão para perceberem a nova realidade de Jesus, que só era compreensível à luz da fé. Necessitaram de tempo para que se operasse a transformação interior que lhes permitisse passar da visão do Jesus histórico para o Jesus do kerigma – o anúncio evangélico do Senhor ressuscitado. O tempo da transformação interior é aquele em que o comportamento humano, nas necessidades, interesses e expetativas, se redefine num crescendo de conhecimento, maturação e de relação com Deus.
Isto é, a celebração da Ressurreição é um evento anual, pode até ser uma notícia de telejornal. Porém, muito mais do que isso, a Ressurreição do Senhor é um caminho numa nova ambiência de vida afirmada onde entra Jesus vivo e o Espírito Santo explode e se manifesta. Não foi por acaso que os primeiros seguidores de Cristo foram chamados os do Caminho. É, a Ressurreição é um estado de vida onde se têm de expressar continuamente a referência a Deus, tal como Jesus Cristo no-Lo anunciou, a ética em todas as circunstâncias e, particularmente, nas relações com os outros e com a natureza, a solidariedade para com os que sofrem e precisam. A Ressurreição de Jesus é o enquadramento para os momentos mais significativos da nossa vida, tais como os de fazer escolhas, tomar decisões, gerir expetativas. Só assim se compreendem as palavras de Jesus a propósito da Sua morte e ressurreição “quem se preocupa demais consigo mesmo, perde-se. Mas quem se despreza a si mesmo neste mundo, ganha a vida eterna. Se alguém quer servir-me, tem que seguir o meu caminho” (S. Jo 12, 25).
 
4. Iniciemos, então, o tempo pascal com a aleluia alegremente entoada no nosso coração e com as nossas gargantas porque Jesus Cristo nos deu a vitória da vida sobre a morte. Mas, cuidado, tenhamos consciência de que há em nós, como nas mulheres do evangelho de hoje, a tendência para empregarmos os quadros de pensamento humano e material em tudo o que se relaciona com a nossa vida, para olharmos o transcendente com os olhos das nossas incapacidades e, depois, como no caso delas, somos confrontados com o espanto e o medo. Como alguém explicou[1]: “se nos considerarmos a nós próprios como medida de todas as coisas, com a nossa existência humana tal qual é, com o mundo tal qual nos envolve, com a nossa maneira de pensar e de sentir, e começamos a ver Jesus Cristo a partir daí, só poderemos ver na Ressurreição o produto de certas emoções religiosas, o resultado de uma vida comunitária nascente, numa palavra, uma ilusão.” Ora, a fé na ressurreição exige-nos que pensemos o mundo, a nossa vida e todas as coisas em função do ressuscitado. N’Ele começa uma nova forma de existência. Isto é, olhemos para a Ressurreição do Senhor como fundamento de tudo o que na vida é verdadeiro e vivamos em conformidade com a Sua presença vivificadora nos nossos corações.
 
Que assim seja. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ámen.
 
+ Fernando Soares
Bispo Diocesano
 
www.igreja-lusitana.org
 
 

 


[1] Romano Guardini in “O Senhor”, Livraria Moraes Editora, Lisboa, 1964, pág 407