baseadas na homilia do culto de Quarta-feira de Cinzas do Arciprestado do Norte,
na Paróquia do Bom Pastor, Candal, Vila Nova de Gaia
[22-02-2012]
 

 
Ao celebrarmos a quarta-feira de cinzas iniciamos a caminhada quaresmal até à Vigília de Páscoa, sob o tema da penitência para a conversão, a mudança de vida. As cinzas com que fomos “marcados” simbolizam, na continuação ritual do povo do Antigo Testamento, a consciência da nossa fragilidade e são sinal do nosso pecado e do nosso arrependimento. Assim nos equipámos para assumir o compromisso de refazer a relação com Deus e com as outras pessoas, preparando-nos para a celebração do acontecimento central do cristianismo, a vivência da Páscoa e a Ressurreição de Cristo.
 
Mas, ao fazê-lo, importa que tenhamos presente que vivemos um tempo e numa sociedade onde palavras como fragilidade, arrependimento e penitência saíram já do falar quotidiano. Então, há que esforçar-nos por descobrir o que neste tempo e nesta sociedade significa penitência, conversão, e mudança de vida. Ora, é à luz desta circunstância que vos proponho alguns pensamentos que podem servir como instrumentos para vossa reflexão na caminhada quaresmal. 
 
Em primeiro de tudo, não podemos esquecer que Jesus veio pregar o Reino de Deus, isto é, uma ambiência em que as nossas relações com Deus e com as outras pessoas adquirem uma tonalidade que nem sempre se ajusta à normalidade da nossa existência quotidiana. Basta ler com a devida atenção o chamado ‘sermão do monte’ em S. Mat 5, lembrar a resposta de Jesus a Pilatos, num momento crucial da Sua vida, “O meu reino não é deste mundo.” (S. Jo 18,36) e também a palavra de Jesus na sua oração no Getsémani com referência aos seus discípulos “eles não são do mundo, como eu não sou do mundo” (S. Jo 17,16). Por isso, o Apóstolo Paulo advertia os cristãos de Roma: “Não vivam de acordo com as normas deste mundo, mas transformem-se, adquirindo uma nova mentalidade.” (Rom. 12,2). Na verdade, a  realidade para que Jesus nos aponta, a realidade para que, como gente de fé, fomos talhados (II Cor. 1, 22), tem de ser procurada segundo um critério de exigência que nos leve a repensar a nossa vida à luz da mensagem de Jesus, centrada no amor a Deus e ao outro. É, assim, que na vontade de seguir esta outra maneira de estar temos de rever alguns aspetos da nossa vida diária e assumir o nosso próprio compromisso perante a vida e perante Deus. Como nos diz o cântico 17 (CTN): Livres nós somos para habitar ou ir, livres nós somos p’ra sim ou não dizer”.   

Atentemos, então, em 3 áreas da nossa vida diária em que devemos ponderar uma possível mudança de vida, em processo de penitência e conversão.   
 
A primeira. Neste nosso tempo querem fazer-nos acreditar que somos donos das nossas vidas e livres para fazermos delas o que quisermos. Para isso, apresentam-nos soluções científicas e tecnológicas para os diversos problemas com que nos debatemos, sejam de consciência, físicos ou psíquicos, soluções que geralmente têm um preço e, portanto, se podem comprar. Também se focalizam na ideia de força, beleza e capacidade como elementos base para a felicidade, e, assim, mitigando a valia de quem não é forte, ou belo(a) ou capaz (talentoso). Este é um modo capcioso de nos amolecer e diminuir na consciência da nossa fragilidade e da nossa dependência como seres limitados e mortais. É que, fazer esquecer a visão global da nossa existência que implica a natural aceitação da nossa dependência do Ser que nos criou e que tudo une, leva ao inevitável desejo de querermos ser o senhor de nós próprios, colocando-nos no centro do mundo. Aí não há penitência que valha, nem tempo e “pachorra” para o arrependimento (de quê?). E assim vamos perdendo a noção do que é indispensável ao equilíbrio global da nossa existência: saber que temos um princípio, o Deus criador, e espera-nos um fim eterno, a companhia amorosa do Deus Pai.  
Mas, também, à medida que nos vamos aconchegando no pináculo do templo do nosso próprio universo, vai-se fenecendo o nosso olhar compassivo e fraternal para com os fracos, os doentes, os idosos, os vencidos da vida. Cheios de nós mesmos, do alto da nossa importância, cai a pique o nosso sentido de comunidade e vamos perdendo de vista os outros, sejam os mais pequenos, aqueles com quem Jesus se identificou (S. Mat. 25, 31-46), ou os nossos iguais de quem nos isolamos porque não queremos conviver com eles. Não nos deixemos iludir, os casos de idosos mortos em solidão, noticiados ultimamente pela comunicação social, são o reflexo de uma sociedade que enaltece a individualidade de cada um, chamando-o a viver por si e para si, quebrando os laços comunitários, até mesmo na recusa dos naturais pedidos de ajuda.
Neste contexto, devemos ponderar o nosso modo de viver ponderando, porventura, uma mudança de vida que fará inevitavelmente a diferença. Merece, por isso, ser tomado em conta na nossa reflexão quaresmal.  
 
A segunda. “Faz o que o teu coração te ditar”, é este o princípio que hoje norteia a vivência das pessoas em geral. O nosso coração é a fonte dos nossos sentimentos, dos nossos desejos, que determinam as nossas decisões. Ao decidirmos exclusivamente à luz do que nos dita o coração afirmamos o primado do sentimento em detrimento do pensamento, da nossa capacidade racional. Ora, esta atitude leva-nos a situações de grande sofrimento pela incapacidade de incluirmos nos nossos sentimentos outros elementos que lhes permita a sua adequação à realidade com que têm de conviver. Isto é bem visível nas relações pessoais e familiares.
A nossa identidade, ao longo da nossa vida, vai-se construindo, reconstruindo e até se pode destruir. Isto significa que não somos nunca um ser totalmente feito, antes, estamos em permanente construção ou reconstrução. Apercebemo-nos disso, por exemplo, quando nos olhamos ao longo da nossa vida e vamos descobrindo as mutações a que estivemos sujeitos, não só físicas como de ideias e posições sobre determinados assuntos e pessoas. Tal significa que a nossa identidade alimenta-se de muitos fatores. Se assim é, porquê fazer depender as nossas decisões do mero sentimento, sem a consciência do pensamento e das circunstâncias envolventes?
Um exemplo. No artigo “Conversas estruturadas” de Daniel Sampaio, na Pública de 19.02.12, lê-se: “Muitas vezes é necessária a presença de um elemento exterior que adopte uma atitude neutra e seja capaz de organizar a comunicação conjugal. Muitos casais separam-se porque não foram capazes de ‘estruturar’ uma conversa, sempre que surgiram os inevitáveis conflitos de relação. O médico de família, o padre, o amigo tranquilo ou o terapeuta de casal podem ‘organizar’ a comunicação conjugal e promover a baixa de ansiedade, única forma de se conseguir o crescimento emocional que permita evoluir”. E o que é esta organização da comunicação conjugal senão a libertação do sentimento e a inclusão do pensamento na relação comunicacional do casal!
Reparai como Jesus formula o primeiro grande mandamento: “ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento”. Quer dizer que a nossa vida na fé como em outras áreas não se resume ao sentimento, ao coração, mas contempla também o pensamento. O evangelista S. João até adverte “Deus é maior do que o nosso coração” (IJo. 3,20). O coração, o sentimento, para ser parte de uma decisão acertada precisa de um rumo, dum objetivo, de algo que lhe seja a luz. É aqui que se encontra a importância do pensamento e, neste, da fé.       
Tendo em conta a importância deste aspeto da vida nas nossas relações, conjugais, familiares (pais e filhos), de amizade e outras, parece-me que a sua reflexão nos pode ajudar na possível mudança de vida. Aqui vo-lo apresento para reflexão na quaresma.  
 
A terceira. “Onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (S. Mat. 6,21) – não seria mais razoável dizer: onde está o teu coração, aí estará o teu tesouro? Mas, Jesus diz ao contrário. Porquê?  
 
Uma das circunstâncias do nosso tempo é o consumismo. Quando foi negado o pagamento dos subsídios de férias e Natal aos funcionários públicos logo os economistas disseram que isto ia redundar num decréscimo violento do consumo e, portanto, que isso ia trazer recessão. E tinham razão porque os números macroeconómicos do 4º trimestre de 2011 indicam um decréscimo do valor do PIB. Ou seja, diminuição de transacções e, portanto, de consumo para uns e rendimentos para outros. Isto é, parte-se do princípio que no jogo das atitudes da sociedade o aumento do rendimento implica necessariamente aumento de consumo e ao abaixamento do rendimento corresponde imediatamente um decréscimo de consumo. Não entra aqui o conceito de entesouramento, de poupança. Porquê? O que caracteriza a nossa sociedade é o gastar, o consumir, o que se tem e o que se não tem por via do empréstimo. Perdeu-se a noção de tesouro (poupança) e, na linha das palavras de Jesus, não havendo tesouro perdemos o rumo para o coração. Assim, vivemos segundo o desígnio do consumo, sempre mudando à procura do que o mercado nos vai oferecendo em permanente devir de coisas, serviços e até de sentimentos. Numa palavra, perdemos o norte para a nossa vida, a dignidade para o nosso ser. Deixámos de ter desígnios na vida que se caracterizavam como verdadeiros tesouros em que assentávamos as nossas poupanças e as nossas energias (o coração); deixámos de ser pessoas para ser consumidores, clientes; quando vamos ao Centro de Saúde ou ao Hospital deixamos de ser doentes ou pacientes para ser chamados utentes; para o Estado em vez de pessoas somos o NIF (número de identificação fiscal).  Reparai, mais do que uma crise de confiança, aquela que estamos a viver é uma crise de legitimidade, ou seja, uma crise de perda de credibilidade em instituições que foram até há pouco tempo referências de valores comportamentais que muito contribuíram para a estruturação da sociedade e das pessoas. Para muitas delas, o “tesouro” (o lucro rápido e por todos os meios) onde puseram o seu “coração”, transformou-as em instrumentos destituídos de seriedade e abalou a sua capacidade moral. Mas, não nos descartemos da nossa responsabilidade porque também temos sido (fomos) agentes de uma nova maneira de estar fundada no princípio do consumismo. E, então, como nos vamos situar nesta nova e inesperada realidade? Partir para uma mudança de vida perante o consumismo que tanto nos afeta exige verdadeira e profunda vontade, com dura penitência. 
Aquilo a que o Senhor nos chama é a uma vida forjada na relação de confiança em Deus para ser expressão de seriedade e verdade na relação com os outros. Então, nesta Quaresma ponderemos no que queremos fazer nesta área da nossa vida, à luz da fé, e avancemos para uma prática através do Projeto Esperança em que elejamos como nosso tesouro a preocupação e o cuidado com aqueles que nesta crise financeira e ética vivem o medo e a desesperança gerados pelo desemprego, a pobreza e se abatem em profundo desânimo. O nosso coração, fundado em Jesus, nos dará o ânimo para vencermos a batalha.    
 
O profeta Amós diz-nos: “Buscai o Senhor e vivei” (Amós 5, 15). Não que o Senhor seja o nosso santo milagreiro, mas, acima de tudo, que é Aquele que nos ama e que, portanto, atento ao auxílio que d’Ele necessitamos (nem sempre o que d’Ele exigimos), nos acompanha e nos anima nas circunstâncias do nosso viver. Vivamos, portanto, no crescimento da nossa fé, com um coração aberto à novidade de Deus e aos que necessitam. E assim se fará quaresma de penitência, conversão, mudança de vida.    
 
Para terminar, a oração do salmista: “Faz-me, Senhor, conhecer os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas, guia-me na tua verdade e ensina-me pois tu és o Deus da minha salvação, em quem espero todo o dia.” (Sal 25, 4-5).
 
Que assim seja. Ámen.
 
+ Fernando Soares
Bispo Diocesano


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